Um cavalo pasta inscrito na paisagem, indiferente ao mar e aos seus reflexos de luz. Indiferente ao lento deslizar das gaivotas. Sem perceber o colorido dos barcos que navegam por seus olhos. Sem dar-se conta que aqui não existe horizonte. Há muito que céu e mar fundiram-se na neblina…
Há quanto tempo esses barcos, esse mar, esse silencio, esses deslimites?
Pergunto-me e já começo a sentir o desespero agudo da partida. Logo, tudo serão lembranças. Tantos perfis sobrepoem-se-me na memória. Eles como que recobraram seus contornos nessa ilha. E eu tento preservá-los assim, como eram antes do exílio. Antes do tempo de guerra e de fugas. É dolorosa, em mim, essa presença de corpos que criaram asas. Em mim, que continuo presa ao chão. Sei que, por mais que caminhe, jamais chegarei ao recomeço.
Olho então essa paisagem e escrevo. Pudesse eu transformar cada palavra em pedra e deixá-la aqui, pela eternidade, ajudando a compor esse cenário. As dores calcinadas….Todos os dias elas seriam cobertas pelas marés, e o musgo nasceria sobre… e algas.
Olho pela janela de meu quarto. O buquê branco e cheiroso do arbusto no jardim confunde-se com a fina estampa das cortinas. Esse lugar é diferente de todos que já vi. Aqui a alegria é menos urgente, e o tempo corre lento em sua gestação de novos dias. E há contrastes instigantes preenchendo as distancias. E há o vento. Ah… o vento e o repicar dos sinos.
As horas escoaram por mim, e eu, entorpecida, refugiei-me num espaço interno, num tempo suspenso, onde tudo aconteceu como que por dentro. Por dentro da ampulheta que eu desvirava, a areia presa ali, escorrendo de lado a lado, marcando a vida que se plasmava fora. Fora meus passos no labirinto, fora as palavras, as florestas, as paisagens, as pessoas. E eu também, fora de mim, tentando povoar as manhãs com o meu deslumbramento. E agora, nessa véspera de partir, sorvo as distancias, vestida já de luto. Percorre-me um frio estranho. Um frio na alma.
Um cavalo pasta na paisagem, indiferente a tudo!
Ludmila Saharovsky
Diário de viagem/ Anotações/ Véspera de partida
Ave, Ludmila. Da pedra intangida extrais leite e mel !
Mel são essas suas palavras, querido! Obrigada!