A cidade que nos tem


Eu acredito que lugares, assim como pessoas, possuem alma e carma.
Eles, como nós, passam pelo ritual de nascimento, registro, batismo. Recebem um nome, um padroeiro, seguem um destino. Crescem, amadurecem, multiplicam-se em ruas, bairros, distritos. Adoecem e são tratadas. Ás vezes adquirem moléstias crônicas, que carregam como fardo, por séculos. Outras, chegam a falecer: cidades mortas. E todas elas ostentam inúmeros perfis: Há as tímidas e retraídas, que recusam-se a marcar presença. Há as festeiras, eternamente iluminadas, produzidas, fervendo de gente. Tem as que não param de trabalhar: dia e noite suas altas chaminés cospem fumaça e fogo pelos ares. Existem as incrustadas em montanhas, glamourosas, com DNA europeu, arquitetura requintada.E há as bem caipiras, de uma só rua, com galinhas ciscando e cavalos pastando livres e felizes por entre as cercas de bambu que separam hortas e casas caiadas. Há as de pele tão seca, que ostentam profundas rachaduras e as que transbordam água, ornadas por rios, cachoeiras e lagoas. Existem as que possuem lendas e mistérios, e outras que desconhecem a própria origem. Tem aquelas cujo solo é santificado por basílicas e milagres, e as simplesmente à toa, sem eira nem beira, sem lei nem justiça. Se nós nos abrirmos para os espaços e aguçarmos nossos sentidos, poderemos perceber com clareza que os lugares comunicam-se conosco, e nós ou aceitamos sua vibração e criamos raízes, ou, simplesmente, passamos ao léu, sem deixar qualquer pegada. As cidades palpitam, confidenciam, reclamam, cobram. Assim como as casas (que também possuem alma) e adquirem, com o passar dos anos, cada qual o jeito e até o cheiro de seus donos, as cidades vão assimilando e refletindo a personalidade de quem as habita, uma vez que somos nós quem lhes outorgamos estrutura, a organização de um perfil particular e uma personalidade própria. As cidades, como as pessoas são dotadas de uma certa independência e livre-arbítrio. Elas tem amor próprio e dignidade. Não é fato raro nem isolado que respondam aos mal tratos que recebem transbordando rios, ruindo pontes, desbarrancando encostas, ou então partindo-se ao meio e recolhendo em suas entranhas toda uma estrutura que a agride, mas, embelezadas com jardins e parques, animais e aves, poesia e arte que lhes alimentam a alma, plasmam em nós o bem estar que emitem. E elas sofrem também de nostalgia. Ah! Aquele solar! Aquele antigo convento! Aquele teatro! É quando vagam por dentro da neblina densa da memória: recordam sons, recolhem confidências, rememoram segredos, resgatam anônimos heróis e amantes e conseguem até contagiar-nos, despertando em nós,sentimentos e emoções latentes. Nestes momentos, afloram em cada um, de maneira inusitada, fortes rompantes de cidadania, que nada mais são, do que uma declaração de amor pela cidade que nos tem. Então, adotamos praças, restauramos prédios históricos, recolhemos tênues sinais deixados por nossos antepassados, engajamo-nos em lutas para salvar um rio, um parque, um monumento, um bairro. Em momentos como estes, homens e lugares reconhecem-se unos. Respeitam-se e interagem em perfeita sintonia. Nestas raras ocasiões, a prosperidade se instala e a humanidade é brindada com épocas de ouro, com obras majestosas que glorificam e celebram a vida, tornando-se sólidas referências para as gerações vindouras. Tudo o que os lugares almejam é que o homem lhes reconheça o espírito e a serventia. Que neles respeite o “anima mundi” que a tudo e a todos permeia. Que os honre, ame e proteja, porque são seu lar.
E há momentos, como esse, em que assistimos, pasmos, as cidades se convulsionarem, abrirem feridas sangrentas, gritarem de dor, revolta e medo, e nós, espectadores assustados, nada podermos fazer, pois sempre chegamos, infelizmente, “tarde demais!”
(Ludmila Saharovsky)

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    5 pensamentos sobre “A cidade que nos tem

    1. Ah, a beleza com que adornas as palavas, Ludmila Saharovsky, a palavra que nos toca , que vaza lágrimas em nossos olhos.Eu, que mal conheço meu Acre, fiz desta
      São José que me acolheu, me dá o pão de cada dia, me conforta através de amigos,
      meu aconchego e meu repouso, se Deus quiser.Lindo texto, lindo.Ah, São José, não chores, tua vocação é a cura, o verde , a vida.Obrigada, linda.Beijos.

      • Então, minha irmã acrússia! Tanta perplexidade frente à intolerância humana…O pior é que os políticos, em vez de se preocuparem com o bem estar de todos, sua função maior, só corrompem, dilaceram, empobrecem, atordoam, ferem os cidadãos, derramando mais sangue e ódio por essas veias já tão feridas de nossa América Latina. Minha alma está de luto!

    2. de uma pungência ornada de delicadezas. tua escrita revolve o olhar, para dizer-nos: que nunca é tarde demais. porque não é tarde para flagrar as incongruências, escrevendo sobre toda a dor o que não pode ser esquecido. para que não se repita – não mais longe dos nossos olhos. de um abismo que me atravessa, tudo isso. e também de encontro.

      • Sua escrita ilumina meu site. Tão bom encontrá-la!
        A emoção de conhecer sua avó, sua mãe e agora você, herdeira de múltiplos talentos, é indizível!
        Grande abraço!

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