Retratos de Mulher
*Ruth Guimarães
A lenda hindu, plena de poesia, conta como foi criada a mulher: com as curvas dos rios, a agitação da onda, o perfume da flor, o colorido da rosa, a suavidade das rolas, o mistério do luar, o arfar do brando zéfiro, a música dos gorgeios, e por aí vai.
O deus criador usou também na escultura gentil a maldade astuta da serpente, a malícia da raposa, o efeito letal dos venenos; e assim danou para sempre a sua obra. Acrescentou-lhe o sal do pecado da sensualidade, da mentira e da preguiça. Mulher.
Agora, a lenda judaica:
Jeová, primeiro refletiu sobre de qual parte do corpo do homem poderia se servir, para esculpir a mulher. Teria que ser material nobre, osso, cartilagem, carne, vida, em que usaria o cinzel. Andavam longe do tempo em que para suscitar vida humana, lançara mão da mísera argila, lama da terra, de que foi feito o primeiro homem.
E disse Jeová, consigo mesmo, uma vez que ainda não estavam bem ultimados os interlocutores:
– Não quero formá-la da cabeça, para que ela não levante a sua em demasia e não se coloque acima do companheiro, com arrogância de pensamentos vãos. Não quero conformá-la do olho, não vá a fragil criatura espiar, espionar, espreitar por toda parte, arreliando os outros seres recém-criados. Nem quero retirá-la dos ouvidos, para que não dê atenção a murmúrios malévolos, insinuações sutis, sussurradas na concha cor-de-rosa das orelhas. Que sua tendência não seja para aquiescer à sedução do seu arqui-inimigo, o Zombeteiro. Nem tirarei da boca, nem da língua, para que não fale demais e não repita quanto escute, armando enredos. Nem do coração, para que não se torne ora sentimental, ora irritável. Nem da mão, para que não arrepanhe todas as coisas boas, com garras ávidas. Nem do pé. Não deambulará por aí, em vez de cuidar dos deveres.
E decidiu Jeová.
-Mas eu a farei da costela, parte tão casta, que, mesmo que o homem esteja nu, a costela está coberta.
Qual terá sido o retrato final da mulher, retirada de parte tão casta?
* Ruth Guimarâes (Cachoeira Paulista, 13 de junho de 1920) é a escritora mais querida de nosso Vale do Paraíba.
Membro da Academia Paulista de Letras, é poetisa, cronista, romancista, contista e tradutora brasileira
Dentre suas obras destacam-se:
Água Funda. Porto Alegre, Edição da Livraria do Globo, 1946
Os Filhos do Medo. Porto Alegre, Editora Globo, 1950
Lendas e Fábulas do Brasil. São Paulo, Editora Cultrix, 1972
Dicionário de Mitologia Grega. São Paulo, Editora Cultrix, 1972
Crônicas Valeparaibanas. São Paulo, Centro Educacional Objetivo/Fundação Nacional do Tropeirismo,1992
Contos de Cidadezinha. Lorena,Centro Cultural “Teresa D’Ávila”, 1996
Calidoscópio – A Saga de Pedro Malazarte. São José dos Campos, JAC Editora, 2006.
Histórias de Onça. São Bernardo do Campo, Usina de Idéias Editora, 2008. Volume I do Projeto Macunaíma.
Histórias de Jabuti. São Bernardo do Campos: Usina de Idéias Editora, 2008. Volume II do Projeto Macunaíma.