Memória marí(n)tima

Entre o anoitecer e o silêncio, percorro mares da memória, em paisagens de antes, que já não me pertencem.
A solidão abraça-me e me acompanha. Ela me é necessária pois me transporta a um tempo que eu gostaria de eternizar. Ela preenche meu sangue, dilata-se, bate com seu ritmo compassado em minhas veias, e reanima outros pulsares, inconfessáveis, de íntimas inundações. Assim, sem qualquer resistência, me entrego. Recordar é outra forma de habitar o tempo!
Súbito, teu rosto amado desliza pelas ondas e me alcança. Essa presença inesperada é como brisa tênue que me envolve. Farol de luz num oceano de tormentas. Perturba-me ainda o ardor, teu corpo curvado sobre o meu ao peso da ternura. Escuto tua voz latejando no centro do que fui, num lugar de praias e gaivotas. Ali eu te guiava, a alma estremecida por tremores, a pele devastada por arrepios, enlouquecida pela intensa vigília a que me obrigavas: ora vinhas do norte, ora do sul, as caravelas trazidas pelo vento. Buscavas em mim os infinitos, a transparência luminosa das manhãs, vôos selvagens, novas correntezas. E eu me abria, sem reservas, ao toque leve de tuas mãos. E, a partir dessas vivências, fomos desenhando a rota para um percurso que guardamos em segredo. Só esqueceste de dizer-me que eu seguiria só.
Agora, perco-me nesse espaço de memória e vigília, tão dolorida de saudade, no qual a neblina tem o poder de encobrir historias, transformando-as em lembranças.
Navego sem destino por esse mar de dentro, sem porto nem enseada, perseguindo o que não vivi. Falta-me teu sopro de alegria, teu cheiro, teu gemido. Estremeço, não mais pressentindo a certeza, mas a fragilidade. Aves marinhas ciscam minha alma em busca de um alimento que não possuo. Só seixos, conchas vazias e troncos retorcidos compõem essa paisagem corroída pela maresia. Desde que te exilaste de mim, sou toda calcário e sal. Estátua muda pendendo da proa de um navio fantasma. Olhos vazados intuindo o nascer lento do sol, deixo-me levar pela corrente. E rememoro. Rememoro para alcançar o inalcançável. Relembro, tentando trocar o amor pela memória dele mesmo.
Relembro, que é meu jeito obsessivo de te reencontrar, navegando nas águas de tua ausência. Finalmente o dia surge, e a dor da tua partida joga-me violentamente de retorno à vida. Por pouco tempo. Sol posto, volto a navegar!
Ludmila Saharovsky
(texto publicado no jornal O Valeparaibano)

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    5 pensamentos sobre “Memória marí(n)tima

    1. Puderamos nós todos lua saida econtrar o amor perdido …
      És feliz demais …
      Podes até navegar nas águas das ausências …
      Vai que a lua chega …
      Navega no prazer de relembrar …

    2. Li muitas coisas suas, mas essa me arrepiou ao extremo….parabéns amiga, quando fizer algum estudo de escritor aqui em Salto, certamente estará nele, e te vou querer aqui para rememorar também…bjs mil

      • Obrigada, minha linda!
        Recados de leitores me estimulam muito, e de leitores queridos, mais ainda!
        Vou lançar meu livro Tempo Submerso, por aqui, em meados de maio.
        Quem sabe me agenda para Salto?
        Seria um Salto e tanto!
        Beijão!

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