Desde que imigramos para o Brasil, vínhamos morando em modestos cômodos de algum fundo de quintal. “Fundos” vinha escrito na correspondência, raríssima, que recebíamos. Agora, nessa outra casa não! Nela havia um jardim só nosso, com pequeno alpendre e janelas que se abriam para a rua. Um luxo único! Eu nem consegui pregar os olhos na noite que sucedeu ao dia de mudança! Observava encantada meu novo quarto, acostumando-me ao seu cheiro, aos ruídos que vinham da rua, a uma outra disposição da antiga mobília que compunha um ambiente nada familiar e por isso mesmo instigante: Que aventuras me aguardariam naquele bairro, naquela casa, em outra escola, eu imaginava, excitada, o olhar fixo no teto. Vocês não calculam a extensão da felicidade em possuir-se um quarto apenas para si: Poder ouvir o rádio até a hora que bem entendesse, ter uma cômoda e um guarda-roupa particulares, esparramar livros e cadernos sem precisar escutar as reclamações da avó! Mas, essa casa recém alugada possuía duas janelas que davam para a rua e, de uma delas, eu me apossei de pronto! O fato de não termos televisão, ainda, já nem me importava tanto. Afinal, de minha janela, todas as manhãs eu assistia o passar da vida: Via o leiteiro que deixava os litros cheios no canto do alpendre, carregando os vazios; o afiador de facas que tocava uma gaitinha anunciando sua presença: firuli…firuló. O verdureiro que empurrava ele próprio a carrocinha com alfaces recém colhidas, cheiros verdes e outras verduras, o vendedor de bijus e pirulitos batendo a matraca. Pela rua passavam bicicletas, carroças puxadas por cavalos, mães levando os filhos, pela mão, para o colégio com aquelas maravilhosas lancheiras de couro que possuíam repartição até para a garrafinha de suco. Elas constituíam-se em meu maior objeto de desejo. Eu ficava imaginando-me também portando uma, à tira-colo, o que evitaria que livros e cadernos fossem contaminados por aquele cheiro de pão com bife, ou pão com ovo de meu lanche, que ia simplesmente acondicionado num guardanapo, no fundo da mala escolar, junto à garrafa térmica contendo suco ou leite achocolatado. E à tarde passava o sorveteiro. Então… era uma festa! Primeiro a ladainha para conseguir a permissão de compra com o avô. Depois as recomendações de praxe: devagar…sem morder…olhe a garganta…E aí, aquela groselha gostosa, materializada em formato sempre tubular, escorrendo pelos cantos da boca, deixando grudado no palito o gelo branco e insosso.
À noite, a criançada corria pela rua empoeirada, num alucinante pegador de bate latas ou esconde esconde, até que surgia o rapaz vendendo amendoim torradinho. A lata que lhe servia de fogareiro soltava mil estrelas prateadas produzidas pelo girar alucinante que avivava as chamas em seu ventre. Que horas seriam? Não importava. Havia como que um consentimento tácito entre a turminha: Depois do rapaz do amendoim, cada qual ia para sua casa. Menos eu. Eu já vivia dentro. Os avós não me deixavam brincar na rua. Coisas de moleques! Menina educada não vai! E não ia mesmo!
Da minha janela eu via passar os namorados, os bêbados, os cães vira-latas, os caminhões da feira, os caminhões de água que, com grossas mangueiras assentavam o pó da rua, as freiras do colégio, os cegos vendedores de vassouras, num caleidoscópio de imagens plasmadas para sempre em minha mente. Era dali que eu observava a vida, tentando adequar-me à ela. E o tempo passou. De repente, eu cresci, amadureci mas não perdi a mania de ficar debruçada em janelas, agora virtuais, metade protegida pela casa,metade absorvida pelo mundo, vendo a vida passar, feito filme…
(Ludmila Saharovsky)
Amei!! Amo bichos (meus prediletos são os pássaros, cães e gatos). Tenho árvores, tenho pássaros por alguns segundos, só meus, que cantam só para mim!!
Abraço querida.
Kika Campos
Então foi isso … a prática a fez perfeita observadora !!!
Mara Lucia Sebbem Esteves Ahhhh Como amo ler você…Absorvo com a mais pura emoção o seu filme e assim revivo o meu.Lindo,lindo!!!!
Dá uma saudade! A janela multidimensional já tinhas, Lud. Que doçura extrais da vida, este mel que nos alimenta!
O final de sua crônica fez-me recordar de um livro que li há mais de uma década, entitulado “Portais secretos, acessos arcaicos à internet”, de rabino Nilton Bonder.