O medo é um guia cego.
Ele nasce de algum ponto obscuro em nosso interior, e quando nos damos conta, já é tarde. Estamos sitiados, reféns de um sentimento que nos acovarda, imobiliza, limita, transmuta. O corpo responde encolhendo-se. O cérebro produz pensamentos de ódio, incompreensão, revolta. E a alma…Ah! A alma sofre enclausurada. Dentro do peito arrebentam-se mil desejos contraditórios. O que seria melhor: O enfrentamento? O recolhimento? O alheamento? A placidez? A barbárie? A indiferença? A fuga?
Um tremor desliza por nossos nervos e arrepia a pele deixando os sentidos em guarda: De onde virá o inimigo?
O medo é um sentimento limoso.
Ele se adere a nós por dentro, por fora, e nos subjuga. Faz com que caminhemos em círculos, com dificuldade de nos movermos, como se estivéssemos com as botas cheias de lama coladas ao chão. Por mais que haja brisa, e que a luz do sol brilhe lá fora, esse lá fora parece um lugar inatingível. O vento não chega até nós, para aplacar o suor do corpo.Tudo se reveste de ameaça: um gesto, uma frase, um ruído, qualquer presença. Um segundo pode fazer toda a diferença entre o viver e o morrer. . Num instante uma rajada atravessa o carro, a porta, a parede e nos pega ali, completamente indefesos, despreparados, aturdidos, modificando radicalmente nossas vidas.
O medo é um espectro.
Ele nos persegue e nos alcança em qualquer esconderijo. Invisível ele dissolve nossas convicções e nos acua. Sufoca as esperanças, aniquila o amor próprio. Deixa-nos órfãos, à mercê, do lado negro da força, que não reconhece limites…Que não respeita esconderijos, sejam eles físicos, sejam psicológicos. E, nessa contínua espera da porta que em nós, a qualquer momento pode ser arrombada, o medo vai gerando seu negro lírio de odor nauseativo, que anestesia.
O medo é um vírus mortal!
Ele provoca uma dor física insuportável. Dor de bola de fogo descendo pelo esôfago, queimando as entranhas, perfurando as vísceras, abrindo cavernas na carne viva.
Ah! E o medo também petrifica.Transforma o claro em nós em bruma sólida, em rocha de sal, em marco intransponível. Lágrimas em pedras. Palavras em fósseis. Asas em crostas.
Enquanto escrevo, a sala enche-se de estilhaços de balas e de vidros. De fogo e cinzas. De gritos e lágrimas. O sangue jorra ao meu redor e mancha o tapete da sala onde repousam meus pés descalços. Vejo as marcas que a morte vai deixando. Um último alento, escurecendo o cristal da vidraça, encobre a tarde. Pássaros negros levantam voos sobre a nuvem de estupor que me envolve a alma, feito arame farpado.
Feito arame farpado aprisiona-me dentro de mim. Sim, afinal aconteceu a guerra anunciada. A violência rompeu os diques e inundou nossa rua, o jardim, o alpendre, o quarto, a nossa vida. Surpresa? Não! Torpor. A televisão prossegue nos massacrando com as notícias do dia. Imagens de desolação e violência por toda parte. Sirenes, labaredas, rajadas, estampidos, correria. Por toda parte a cauda materializada do terror e a incerteza se sobreviveremos. Mas, amanhã será um novo dia. Contabilizaremos os vivos e os mortos. Ouviremos as mesmas explicações que não explicam nada e as eternas promessas que jamais serão cumpridas. Sairemos às ruas, o medo grudado ao corpo para enfrentarmos mais uma jornada, feito autômatos. Feito robôs. Sobre as nossas cabeças, a Rosa de Hiroshima abrir-se-á novamente em pétalas de angústia e os mortos cobrirão os céus com suas invisíveis mãos pedindo ajuda…
Ludmila Saharovsky
(Crônica publicada no Jornal O Valeparaibano)
Como disse Drummond, em versos que se harmonizam com a sua criação:
… morreremos de medo,
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas!