Na tradição ortodoxa, que eu seguia na minha infância, a quaresma era um teatro, no qual nós, por vezes espectadores, por vezes atores, nos preparávamos para dois atos, sobejamente conhecidos e sempre repetidos e celebrados: O horror da traição e morte de Jesus, e a sua ressurreição, num claro simbolismo de que a morte é feito o casulo do qual a larva se liberta e recomeça a vida como ser alado.
Os 40 dias que antecediam ao clímax deste drama, celebrado na Semana Santa, nos preparavam, anualmente, para nos interiorizarmos e fazermos um exame de consciência sobre as nossas transgressões, tão humanas e por isso mesmo, tão repetidas. O corpo precisava ficar mais leve. E a alma idem. A carne vermelha era abolida do cardápio. E a branca também, pelos mais radicais. Peixe era permitido, mas apenas às sextas feiras.
Na quaresma não se ligava a televisão. Quando muito se permitia ouvir música clássica, em especial a obra sinfônica de Rimski-Korsakov “A grande Páscoa russa” que é linda”. Aliás, tem muito tempo que não a ouço…
Os lampadários de frente aos ícones permaneciam acesos dia e noite, vivificando a mancha amarelada do teto, com sua tênue fuligem, enquanto o avô se entregava à leitura dos evangelistas com a família reunida para ouvir, se emocionar e pedir perdão a Deus, em silêncio, pelos pecados cometidos.
A cada liturgia dominical, os fiéis também pediam perdão, uns aos outros, por qualquer falta voluntária ou involuntária, antes de receberem a comunhão. E o sacerdote , do púlpito, repetia a máxima do “amai-vos uns aos outros” antes do início dos sermões.
Depois da Páscoa, a vida seguia seu ritmo natural, mas todos se sentiam melhor para mergulhar na rotina e nas pequenas e grandes transgressões, até a próxima quaresma.
Cresci e me afastei das celebrações da igreja dos meus, mas as sementes de devoção e sacralidade que aconteceram nos templos de minha infância, seguem para sempre em meu coração. Que meu corpo seja o templo vivo para o espírito que o habita.
A cada quaresma eu me preparo para me libertar desta casca que me envolve, deste sudário de sangue e ossos para voar, momentaneamente, rumo à Ressurreição, que, quem sabe um dia alcance a mim também, neste palco da vida no qual atuamos, cada qual interpretando o seu papel. Que assim seja e assim se faça. Amém. (Ludmila) imagem Internet