A morte, na minha infância de tradições russas, sempre confundiu-se com celebração.
Após breve missa cantada, na qual amigos e parentes encomendavam a alma do falecido, a família convidava a todos para o pominki – reunião em memória do morto- na qual era servido aos comensais um farto lanche, regado a muita vodca, e composto de apetitosos canapés. O arenque defumado, cortado em fatias grossas e servido sobre o pão preto, era iguaria obrigatória, além de pepinos, tomates e cogumelos em conserva, bem como os piroshkis – uma espécie de pastéis assados – de carne e de repolho. Inesquecível, pelo menos para as crianças, era o arroz doce, cozido com maçãs fatiadas, ameixas, uvas passas e enfeitado com variados confeitos de goma, formando cruzes, que recendia a velas e incenso.
Sei que nos velórios ingleses é costume servir muita cerveja e bolo, ou vinho e biscoitos do tipo pão de ló torrado no forno, para ser mergulhado em cálices de vinho do Porto. Depois os amigos levam para casa, de lembrança, um doce parecido com o nosso bem casado, envolto em papel ,com símbolos de caveiras, ossos cruzados e ampulhetas.
É no México, no entanto, que a morte é tratada com a maior naturalidade e tranqüilidade. Este convívio carinhoso e alegre com os que já partiram vem desde 1563, quando o beato Sebástian de Aparício começou uma tradição de cerimônias fúnebres junto aos índios, e que veio de encontro a costumes ancestrais há muito estabelecidos. Em todas as casas são armados altares com velas votivas, candelabros, fitas, muitas flores, incenso. São preparados pratos especiais, decorados com figurinhas de açúcar representando crânios, ossos, esqueletos, demônios. São armadas procissões de enterro com todos os seus figurantes, parecidos com nossos presépios. As famílias inteiras se envolvem, capricham na decoração, na confecção do pão dos mortos, das tortillas e feijões. Quem descreve estas cerimonias muito bem, é Guadalupe Rivera, no livro Fridas Fiestas, da editora Potter. Guadalupe, filha de Diego Rivera, viveu muitos anos com Frida Kahlo em Coyacán – México. Frida a cada ano superava-se nas comemorações em memória de sua mãe. Armava uma mesa enorme, enfeitada com caveiras e esqueletos dançantes de papier machê, que eram verdadeiras obras de arte. Guarnecia a mesa com suas frutas preferidas, com nozes, amendoins, cana de açúcar. Ao lado colocava uma imitação do túmulo feito de flores de papel, contendo o retrato da morta. Durante o dia inteiro, servia comidas tradicionais mexicanas, pães dos mortos, e biscoitos de ossinhos aos amigos que iam visitá-la.
No Brasil, tornou-se tradicional a peregrinação aos cemitérios no dia de Finados. Túmulos são lavados, consertados, enfeitados com flores e velas. Alguns centralizam verdadeiras procissões por conta de histórias de graças concedidas…Segundo relatos de Jorge Amado, na Bahia também são oferecidos quitutes específicos em velórios e recepções após missas de sétimo dia: bandejas enormes de cuscuz de milho e de tapioca, fruta-pão, banana-da- terra e batata-doce cozidas, beijus, biscoitos, broas de fubá, queijos, bules com leite, chá e café. E quando as visitas se demoram…é providenciada, para o almoço, uma bela peixada feita com leite de coco e azeite de dendê…
Os ritos, sejam sagrados ou profanos, ajudam-nos a encarar a morte de frente, e a suportar a dor do luto. O que não deixa de ser um grande aprendizado, inclusive, culinário!
(Ludmila Saharovsky)
Lud … vc é demais, estudando os índios com meus alunos e eles me perguntaram justamente isso…por isso, também te amo…bj
Pois então, minha querida!
Este assunto deveria ser tratado sempre, com a leveza que merece.
Tenho plena certeza de que você o faz.
Morrer nada mais é do que voltar ao seio de nosso Pai/Mãe para o necessário repouso ao final da jornada.
Beijos, beijos e que nossos mortos queridos sobrevivam nas nossas melhores lembranças!
Silvana Conterno (Via Facebook)
Adorei sua crônica. Uma sobrinha minha, está morando no México e postou um altar exatamente como você descreve. Acredito que estamos um pouco afastados de rituais, como se a vida fosse complicada ou simples demais para estas cerimônias. Vivemos como se a Morte não existisse, quando só a consciência dela nos dá a exata dimensão desta vida, do que é importante e do que é ridículo.
Silvana Conterno, fiquei pensando no que você escreveu, e acredito que não celebramos a morte porque na verdade não queremos pensar nela. Todos temos um medo visceral da morte, como se ignorá-la significasse afastá-la.Somos muito mal preparados para esse outro momento da vida e sua finitude. As religiões nos aterrorizam com castigos eternos pelas nossas falhas humanas. As religiões orientais, neste sentido, dão mais alento, fazendo-nos entender que estamos aqui aprendendo e voltaremos quantas vezes se fizer necessário, explicando a morte como o descanso da alma antes de reiniciar nova jornada. Obrigada pela leitura e comentário, querida! Lud
Paula Gaspar Machado (Via Facebook)
Muito boa a cronica, muito esclarecedora, informativa, e sem dúvida uma lição para aprendermos a suportar com mais naturalidade este momento.