Atrás de incontáveis máscaras havia um rosto, ou, poderia dizer-se também, sem medo de errar que, atrás de incontáveis rostos existia uma máscara.
Dilema! Tanto tempo fundidos – as máscaras e os rostos – que era difícil distinguir qual era qual. Indecifráveis, todos lhe pediam exclusividade. Mas, e para além?
Para além, o desconhecido! As trevas encorajavam-na a desvendar definitivamente este mistério de sua existência, enquanto a brisa leve dançava nas cortinas: odalisca envolta em transparentes vestes, chamando-a para a vivência seguinte, como nos contos das Mil e uma Noites.
Ela olhou-se atentamente no espelho, buscando pistas: a pele claríssima, de porcelana. O batom delimitando a boca. E uma lágrima, do olho esquerdo, escorrendo pela face, lenta. Não conseguiu secá-la. Estava impressa. Na máscara? No rosto? Em sua alma? Na reluzente face do cristal?
Apalpou-se com a ponta dos dedos e estremeceu. Sua face não sentiu o leve toque. Aproximou-se mais. Ficou tão junto que percebeu o hálito recobrir o vidro com textura adamascada. Olhou-se fundo, nos olhos e só então percebeu o rosto. Mas ele também não se movia. Estava absolutamente impassível, impenetrável.
Lá fora, a vida, as luzes, as pessoas, as paisagens. Ela buscou, aflita, sua voz na distância. Procurou ouvi-la dentro da noite, perdida entre tantas outras, na esperança de saber-se viva, ao menos pelo som. Não obteve um simples eco em resposta. Quanto esforço para revelar-se! Que espaços necessitava de transpor? Qual tipo de persona procurava? Com qual identidade sairia, inaugurando finalmente, em si, o aguardado enredo? Não conseguira, em tantos anos, assimilar a linguagem híbrida das ruas, a catequese da nova cidade, os signos em constante movimento. Era estrangeira naquele meio. Emigrada de longínquas planícies, tentava, em vão, aprender os costumes dessa terra alheia. Buscava por milagres que não aconteciam, por paisagens frias que derretiam abaixo do Equador, por lembranças que não a resgatavam. Foi quando recorreu à primeira máscara: aquela personagem até que lhe caíra bem! Usou-a por algum tempo, criando à sua volta um novo mundo. Mas, imersa numa realidade que também não lhe pertencia, logo sentiu-se pouco à vontade e experimentou a seguinte. Da qual também se cansou. E assim foi vivendo, de salto em salto, de fantasia em fantasia, de porto em porto, na vertigem de ser sempre outra. E, na magia de reinventar-se, acabou perdendo sua verdadeira face. Ah! E como era difícil reencontrá-la! Quem era ela afinal? Desdobrara-se aos poucos entre tantas latitudes, fugira de olhares que a perscrutavam, da constante curiosidade dos passantes, refugiando-se em identidades, outras. Transportara-se em viagens intermináveis em busca de suas raízes, para além do tempo, num mar de sombras e de espectros. Mas hoje, particularmente agora, sentia-se tão cansada! Olhou novamente para o rosto, aquele, por trás das máscaras e resolveu que chegara a hora de assumi-lo. Estendeu as mãos e tocou com infinito carinho cada marca, cada ruga, cada poro até que finalmente, ele se moveu. Olhou para ela, de dentro do sumidouro do espelho e, retirando toda a pele humana, lhe sorriu.
(Ludmila Saharovsky)
Arquivo do autor: Lu Saharov
Toda a poesia
Presentes de Natal
Este ano, no Natal, resolvi presentear meus netos com algo diferente: um livro.
Já vejo a interrogação nos olhos de vocês: “E desde quando um livro é presente diferente?”
Acontece que esses livros são! Eu os criei a partir do universo particular de cada neto e por eles protagonizado.
Parafraseando Rubem Alves, meu muito amado: “Meu sonho fez amor com as folhas e o livro nasceu.” E foi uma experiência incrível!
A ideia veio lá de longe, de minha infância. Estávamos recém chegados ao Brasil. Eram tempos muito difíceis de pós guerra, especialmente para imigrantes, como nós.
Meu avô, para não me deixar sem presente naquele primeiro natal brasileiro, acabou por criar um livro com recortes de fotografias impressas em revistas. De cada revista que encontrava, descartada pela vizinhança, ele aproveitava as imagens mais bonitas. Ele as recortava e colava em folhas, deixando espaços para que, depois, nós interagíssemos, criando nossas próprias histórias. Assim, no primeiro livro que ganhei, começou minha aventura secreta, que não cessou até hoje: Caminhei por jardins da França, castelos da Inglaterra, vivi em casas suntuosas de revistas norte americanas de decoração, corri em parques, naveguei por rios, tive pôneis e carroceis só para mim! Ah…E todas as bonecas dos anúncios! E todas as guloseimas que meus olhos puderam degustar! A cada início de noite, eu e avô deitávamos no tapete do quarto e começávamos nossa aventura daquele dia. Nada, jamais se equiparou ao prazer que este livro me trouxe!
Pois bem, resgatando essas lembranças, resolvi que repetiria a experiência com meus netos, de forma um pouco modificada, pois, nesses tempos modernos, não há brinquedo que eles não possuam!
Passei semanas pesquisando e salvando imagens na Internet (Minha revista de fotos virtuais…)Depois, eu as imprimi, adaptando cada desenho a uma historia mágica que os meninos protagonizariam.
Alecsia ganhou um livro com aventuras em Guararema, onde ela descobriu um unicórnio perdido em meio à mata e, auxiliada pelas labradoras Shiva e Salomé, por trilhas inesperadas, foi em busca de seus pais!
Para Anna Luisa, que mora em Recife, escrevi “A bolsa mágica de Anninha”, que voa e se transforma ora numa barca submarina, ora num balão e a leva para incríveis aventuras. No fundo do mar, Anna conheceu a Rainha das Sereias, e, e sobrevoando as montanhas do Vale do Paraíba, chegou, finalmente, à casa da vovó!
Para MIguel, seguiu a historia de uma menino e seu inseparável aviãozinho vermelho que o leva a visitar todos os primos espalhados do Oiapoque ao Chui, e, em cada lugar eles se envolvem em incríveis descobertas!
Maria Claudia recebeu um livro com o convite trazido pelo bico da gaivota, contendo um mapa para chegar até o Reino do Mar de Dentro, numa ilha secreta, cujo caminho só ela consegue decifrar…
Não sei ainda, se nesse universo de brinquedos eletrônicos e jogos virtuais, meus livrinhos artesanais conseguirão enfrentar a concorrência, mas, de uma coisa eu tenho certeza:
Um dia, lá no futuro, eles serão as testemunhas de que em 2012, uma avó que vivia lá no Vale do Paraíba, inventando historias, documentou para seus netos a necessidade de exercitar o sonho e a fantasia para ter uma vida feliz! (Ludmila Saharovsky)
(Os livros foram feitos em edição limitadíssima, um único exemplar para cada neto, sem valor comercial, por isso usei imagens capturadas na NET para ilustrar as capas. (Ludmila)
21/12/2012
Fim do mundo…
Poetas, seresteiros, namorados correi…
É chegada a hora de escrever e cantar/ Talvez as derradeiras noites de luar…”
Profetizam, os videntes de plantão, que nossa terra azul, tal e qual a conhecemos, chegou ao fim. O calendário Maya não mente!
O que eu já recebi de e-mails com informações, instruções, links, mensagens psicografadas por seres intergalácticos e espíritos de luz, encheria a memoria de vários pendrives.
Vamos às informações: No próximo dia 21 de dezembro (daqui a dois dias portanto) o sol vomitará labaredas de fogo tão poderosas que afetarão todos os satélites, motores, geradores, lanternas e faróis. A escuridão irá imperar por três dias. Os satélites cairão sobre a terra, aterrando nossos quintais de lixo sideral. Todas as comunicações serão interrompidas e o desespero será total. O conselho é abastecer a dispensa com alimentos não perecíveis, água, muitas velas e fósforos. E esse será apenas o início do tal do apocalipse.
A par disso, Nibiru, um enorme planeta caprichoso em sua órbita, que cruza os céus a cada 3.600 anos causará com sua passagem, uma inversão de eixos na terra provocando novas acomodações das placas tectônicas e mais ciclones, tsunamis, desmoronamentos. Todas as cidades praianas desaparecerão.
Noruega, antevendo tudo isso, já se antecipou, construindo um gigantesco silo subterrâneo onde armazenou cerca de 100 milhões de sementes e 120 tipos de arroz que preservarão nosso patrimônio agrícola para a nova civilização que aqui surgir.
Milionários do mundo inteiro também já asseguraram sua imortalidade construindo luxuosos bunqueres nos quais irão refugiar-se juntamente com a sua fortuna, na tentativa de sobreviver ao Cáos: os novos faraós enterrados vivos! Que homo os encontrará?
E nós, pobres mortais, homens sem eira nem beira, o que faremos?
Não sei quanto a vocês, mas eu pretendo sentar-me confortavelmente no sofá de minha sala, junto com meus poetas prediletos, uma bela taça de vinho tinto e aguardar com perfeita tranquilidade que se cumpra o meu destino humano, levando como única bagagem minha alma bem lavada…e mais nada!
Nos vemos antes do Natal, com certeza!
Beijos!
(Ludmila)
Não há presente melhor do que nutrir
O baú de minha avó era um pedaço de sua pátria, encaixotada.
Quando as saudades apertavam, ela sentava-se no chão, abria a pesada tampa e começava a revirá-lo em busca de seu passado ali acomodado.
E eu, criança, viajava com ela por tantos objetos enrolados em papel pardo: livros, missais, fotos, cartas amarradas por fitas de veludo já carcomidas e descoradas pelo tempo e por estranhos e mágicos caminhos que se me abriam ali, ouvindo suas histórias.
Lembro-me do cheiro bom que dele se desprendia e impregnava a sala com inusitados aromas. Perfumes que me levavam a bosques frondosos, às nevascas – que a cada inverno cobriam com seu manto branco e macio as praças e suas igrejas – aos vendedores de castanhas assadas em fogareiros dispostos ao largo das ruas, às casas aconchegantes enfeitadas para as festas de final de ano. Nossa! Como era bom percorrer essas lembranças!
Quando eu completei treze anos, em Novembro, a avó retirou desse baú um caderno grosso, de capa ricamente ilustrada e disse que naquele ano ele seria meu presente de Natal. “Mas, que caderno é esse?” Eu quis saber. “No Natal você vai descobrir!”
Passou-se o tempo, e, a cada ano, no Natal eu o redescubro.
Ele é um misto de diário, agenda, coletânea de boas maneiras, e onde estão anotados, também, poemas, pensamentos e receitas.
Sua capa é revestida de linho cor de cereja e traz estampados dois arcanjos gorduchos e nus, folheando um livro de receitas.
Logo na primeira página, as dedicatórias:
“Anna: para que nunca te esqueças que a função mais nobre que há na terra é a de nutrir!
Com amor de sua avó Maria Fiodorovna” (Natal de 1860)
A segunda dedicatória:
“Para Alecsandra de sua avó Ana Barissovna” (Natal de 1911)
E a terceira dedicatória:
“Para Ludmila, de sua avó Alecsandra Dmitrivna” (Natal de 1960)
Em suas páginas eu navego por receitas de licores, compotas, xaropes.
Admiro ilustrações, feitas à mão, de mesas arrumadas com taças e talheres certos para cada ocasião. Leio anotações sobre como preparar um borsh ou uma conserva de pepinos, como retirar manchas de vinho de toalhas, ou como enfeitar a mesa para um almoço festivo. Mas, as receitas que mais me encantam são as de pães e bolos. E, desse meu livro raro, eu presenteio vocês, com uma receita de bolo de natal que eu sempre faço para os meus. Experimentem!
Batam com colher de pau numa vasilha funda, uma xícara de chá de manteiga ( agora tem margarina, se preferirem) com uma e meia xícaras de chá de açúcar mascavo, até ficar uma pasta cremosa. A esse creme acrescentem, sempre batendo, um a um, três ovos com claras e gemas. Depois duas xícaras de chá de farinha de trigo peneirada. Prossigam batendo. A essa massa acrescentem: uma colher de sopa de bicarbonato de sódio, 150 gr. de uva passa deixada previamente de molho em meio cálice de vinho do porto ou de conhaque,( que também é incorporado à massa) 150 gr. de nozes picadas grosseiramente ( no Brasil pode-se substituir por castanhas do Pará) uma maçã grande cortada em cubos, uma colher de chá de gengibre ralado, uma colher de chá de canela em pó e uma colher de chá de cravos amassados. Misturem tudo muito bem. Coloquem a massa numa forma retangular e alta, de pão, ou numa assadeira redonda com furo no meio, untada com manteiga e farinha. Deixem assar em forno pré aquecido por 30 a 35 minutos. Quando esfriar, desenformem e enfeitem com açúcar de confeiteiro, nozes, flores de Natal e outros confeitos a seu gosto. Sirvam com uma bola de sorvete de creme. E pronto!
Não há, na terra, função mais nobre que a de nutrir: de pão ou de carinho!
Feliz Natal!
(Ludmila Saharovsky, crônica publicada em 2008 na Imprensa Valeparaibana)
Eu, e o livro de Anton Denikin
Foto tirada pela cineasta Irina Orlova, quando esteve no Brasil, em julho de 2012 em minha casa, para fazer o documentário sobre meu livro Tempo Submerso. Na ocasião ele me presenteou com a obra que estou lendo na foto: “O caminho do oficial russo” – “Put Ruskago Ofitsera” de Anton Ivanovich Deniken (1872/1947). Fragmentos do diário de um general que comandou o Exército branco durante a Revolução Bolchevique e que faz uma análise ímpar dos acontecimentos políticos da época. Meu avô serviu nesse período.
Ária para o assovio do vento
Manoel de Barros
Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um
dia inteiro até chegar amanhã.
O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos
caramujos.
Eles carregam com paciência o início do mundo.
No geral os caramujos têm uma voz desconformada
por dentro.
Talvez porque tenham a boca trôpega.
Suas verdades podem não ser.
Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
Nunca mais deixei de saber que esses pequenos
moluscos
Ajudam as árvores a crescer.
E achei que esta história só caberia no impossível.
Mas não; ela cabe aqui também.
(Manoel de Barros)