Contos Mínimos: Caixa de Pandora


Todos os objetos daquela casa tinham uma historia, que ela não se cansava de ouvir, extasiada. Os ícones, de Pskov, narravam os inúmeros casamentos, batizados e enterros celebrados na família. O samovar, feito em Tulla, descrevia os invernos rigorosos regados a chá e novidades; as cartas, tantas, diziam das saudades geradas pelas separações inesperadas; as fotos expunham sua genealogia; os tapetes, rotos, as inúmeras viagens pelos continentes, embalando sonhos. Mas, um tímido frasco, descoberto na gavetinha secreta do móvel entalhado em madeira antiga, guardava sua historia hermeticamente fechado. Levou dias para destampá-lo, sem danificar a delicada rolha. E quando o abriu…a dor represada fê-la verter tantas lágrimas que, rapidamente cerrou o frasco, sem forças para vivenciar aquele enredo.
(Ludmila)

     

    Porque é dezembro

    O mês de dezembro está aí, a mexer com todas as emoções.
    As cidades vestem-se de luzes, as lojas transbordam de pessoas. Uns amam dezembro, outros odeiam. Cada qual, certamente, possui seus motivos e razões.
    Eu ainda não me decidi. Sei apenas que dezembro é um mês diferente. Tenho onze anos e toda a cidade me pertence. Sem pai nem mãe, perambulo pelas ruas, como se fizesse parte de uma realidade virtual. Tenho tudo e nada, ao mesmo tempo. É como se eu protagonizasse um filme, sem fazer parte do elenco. Eu não estou na paisagem. Eu sou a paisagem. Sou como um poste, um paralelepípedo, um orelhão, um banco de jardim, uma árvore, um cão vadio. As pessoas, de tanto me verem já nem me enxergam. Passam por mim, os olhos perscrutando vitrines, ofertas, preços. Meus olhos, não. Eles, há muito, separaram-se de meu corpo, com suas vontades e seus desejos. Aprendi cedo que vitrine é o lugar onde ficam as coisas que jamais terei.
    Acostumei-me a olhar sem desejar, observar o mundo sem frustrações nem medos. Nada tenho a perder pois nada de meu possuo. Democraticamente, onde vivo, tudo é nosso, e nada é nosso. Às vezes, penso que sou apenas um par de olhos sem corpo, pousados sobre um cotidiano no qual não me incluo.
    Faço parte dos excluídos, e para mim, a vida que levo é a normal. Também, jamais tive outra…Sem parâmetros, as escolhas ficam bem mais fáceis.
    Apanho um naco de pão aqui, bebo um resto de suco ali, e assim vou mantendo minha carne grudada aos ossos. Apesar da idade, já tenho minha própria rotina. Durmo sob qualquer marquise. Conheço os bueiros mais seguros, os mendigos mais fraternos, os veados que não molestam crianças. Sei a hora das rondas e o momento exato em que o lixo comível vai para defronte as lanchonetes. Deixo minha latinha sempre no mesmo buraco do muro da padaria, onde o portuga, meu amigo, deposita restos de empadas e, vez por outra, um naco de presunto. Aprendi a sobreviver da economia informal: aproveito cada migalha; cada trapo me serve de vestimenta, cada saco de cobertor, cada cartolina de telhado. Vivencio meu dia-a-dia, com quase nada de recursos. Sou o administrador dos desperdícios alheios.
    Mas em dezembro…ah, em dezembro as coisas mudam. É como se à minha frente se abrisse um grande túnel de luz, e essa luz me envolvesse e me tornasse mais e mais visível aos olhos dos passantes.
    Talvez seja porque em dezembro, as pessoas voltem para suas infâncias e tornem-se mais puras, mais vulneráveis e fraternas; pensem mais nos seus e nos outros, aproximem-se mais de Deus. Assim, em dezembro, eu me torno este outro. Um outro que precisa ser visto, que pode ser amparado, cuidado, assumido, presenteado.
    Um outro que, de repente, com sua presença pouco asséptica, incomoda a alegria do Natal, estraga o prazer da festa.Um outro que, momentaneamente, desperta nas consciências, o pressentimento de que algo precisa ser modificado nesta cidade de tantos excluídos. Um outro que lembra que, apesar dos presentes, das ruas iluminadas, das lojas repletas, existe sua presença inquietante demonstrando o quanto a pobreza ainda faz parte do contexto. Prova máxima da falência de qualquer espírito cristão. Feliz Natal? Pois é…Feliz Natal!
    (Ludmila Saharovsky)
    crônica publicada no jornal Diário de Jacareí

       

      Infinito Pessoal

      Desvio dos teus ombros o lençol,
      que é feito de ternura amarrotada,
      da frescura que vem depois do sol,
      quando depois do sol não vem mais nada…

      Olho a roupa no chão: que tempestade!
      Há restos de ternura pelo meio,
      como vultos perdidos na cidade
      onde uma tempestade sobreveio…

      Começas a vestir-te, lentamente,
      e é ternura também que vou vestindo,
      para enfrentar lá fora aquela gente
      que da nossa ternura anda sorrindo…

      Mas ninguém sonha a pressa com que nós
      a despimos assim que estamos sós!

      David Mourão-Ferreira, in “Infinito Pessoal”

         

        Conto Mínimo: Achados e perdidos

        Entre a grama do jardim descobriu uma moeda, que guardou no bolso.
        Entre as conchas da praia encontrou um anel, que vestiu no dedo.
        Entre os papeis da escrivaninha localizou uma carta de amor, que reviveu lembranças.
        Entre as lembranças do passado deparou com um suspiro, que, em vão, tentou devolver ao peito.

        (Ludmila)

            

          O prazer de escrever

          Há algum tempo atrás eu fui convidada para conversar com um grupo de alunos do curso primário , numa escola pública de Jacareí, sobre a atividade de cronista. Surpreendi-me com o pequeno auditório repleto de crianças ativas e barulhentas, como, aliás, devem ser todas elas, aguardando-me com caderno e lápis na mão.
          Podem, por favor, guardar seu material. Não estou aqui para dar-lhes aula, apenas para conversar, eu logo fui dizendo. Ah! Alegria geral!
          Apresentei-me: Sou Ludmila, escrevo há algum tempo e vim falar-lhes sobre o prazer que este ofício me proporciona.
          E sobre o que eu escrevo? Sobre qualquer coisa que me passe pela cabeça: sobre o dia, as pessoas que conheço ou gostaria de ter conhecido, sobre a minha cidade, sobre a vida com suas alegrias,tristezas e descobertas. Essa maneira de escrever chama-se crônica, palavra que se origina de outra, grega, e que significa tempo.
          Escrever crônicas, portanto, é escrever sobre o seu tempo.

          “Ah, eu acho bonito escrever, mas é difícil!” ponderou uma garotinha.
          “E eu acho muito chato fazer redação, não sei como é que tem gente que gosta,” replicou um menino de óculos sentado na última fileira.
          Realmente eu também acho muito chato a gente fazer, por exemplo, descrição à vista de uma figura, mas, e se começarmos a brincar com as idéias? Inventar, criar e descrever fugindo completamente dos pensamentos sempre iguais que surgem em nossa cabeça?
          “Como?” gritaram as crianças em uníssono.
          Vamos fazer uma brincadeira com as idéias e as palavras. Vejam, eu trouxe para vocês esse lindo poster de uma jabuticabeira.
          Em vez de escrever, vejo uma árvore e encerrar o assunto, porque à primeira vista todas parecem iguais com seus troncos, raízes e folhas, que tal irmos além? Que tal imaginarmos que aquela árvore é a nossa árvore, como se fosse um amigo, que ela respira, que gosta do lugar no qual vive, que sente dor, que gosta de tomar banho de chuva e receber os passarinhos e aos mil e um bichinhos que vivem em suas folhas.

          “Sabe, tia, na árvore da casa da minha avó tem um balanço de corda e um pneu na ponta, que eu adoro!”
          “Outro dia a professora levou a gente no Jardim “Botâmico” e eu vi um esquilo que morava na árvore.”
          “Muitos esquilos, corrigiu o amigo, Muitos, pequenininhos que pulavam de galho em galho.”
          “E lá em casa tem uma jabuticabeira, mais bonita que essa sua, e minha mãe faz geleia”.
          “A minha mãe faz geléia de amora. Eu adoro!”
          “E na árvore da minha rua caiu um baita raio que abriu a árvore em dois e o galho amassou o carro que estava em baixo!”
          “Sabe tia, a gente sempre vai lá na roça de minha avó e tem uma árvore enoooooorme na beira de um lago, que a gente mergulha dela!”
          A criançada embarcou na ideia, e os relatos foram surgindo. Assim, conversando e criando, o tempo passou e nem nos demos conta. Claro que eles quiseram saber tudo sobre mim também: onde eu nasci, quantos anos tinha, se minha casa era grande e com árvores, e até como era feito um jornal.
          Uma pergunta, no entanto, deixou-me surpresa e perplexa. Um garotinho tímido, que durante todo o tempo ficou me perscrutando sem nada dizer, finalmente criou coragem e levantou o braço: “Tia, e se a árvore imaginar coisas sobre a gente, como é que eu fico sabendo”?
          Crianças,crianças… Tive vontade de carregá-las todas para minha casa, só para pensar e aprender com suas perguntas, algumas, como esta, difíceis de responder!
          (Ludmila Saharovsky)
          Crônica publicada no Jornal Valeparaibano

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