A Pedra e o lago (trecho)

Navego por teu corpo, repleto de complexos itinerários.
Repleto de roteiros secretos,
Vales, escarpas, cordilheiras, istmos.
Nele tudo eu esquadrinho lentamente.
Tudo eu exploro, assinalo, guardo.
Fecho meus olhos e faço a travessia.
Às vezes eu naufrago. Outras, flutuo,
guiada por algo que já não é mais instinto.
Ah! quantas rotas teu corpo me permite,
quantas abstrações, quantos pulsares, quantos delírios!
E arrepios que me habitam na tua ausência.
E andorinhas que me roçam a pele.
Movo-me por teu corpo
marcando meu caminho feito um lagarto.
Feito um besouro sobre a areia fina.
Feito um caramujo.
Por onde passo, deixo um indelével rastro e odor de lírios.
Ora latejo em ti, beijafloreio.
Ora em rendas de espuma me desfaço
Ora me reflito em signos de assombro e luz
E em luas de marfim me perpetuo.
E deixo que floresçam em nós, quaresma e ipês.
Ah! Esse teu corpo imerso em delimites,
Quero trazê-lo inteiro, imantado em mim…
Navego por teu corpo de carne, ossos e espanto.
Em ti eu andarejo, eu andarilho,
cumprindo meu percurso, minha história.
O coração de flechas trespassado. Doido coração.
Doido e doído, corroído por saudades tantas
Que em ti, de ti eu sinto.
E é assim que existo:
entregue à paixão de ser o teu destino.
De ser para ti a carne transmutada em verbo vivo.
Que se transforma em terra e em pão
E te envolve leve, feito um sudário.

(Ludmila Saharovsky)
(Trecho do monólogo A pedra e o lago)

    

    Montaigne, ensaios

    “Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em conseqüência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal, avarento, pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim mesmo um juízo completo, simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir, com uma só palavra.”

    Montaigne (ensaios)

      

      Herberto Helder

      Durante a primavera inteira aprendo
      os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
      correr do espaço
      e penso que vou dizer algo cheio de razão,
      mas quando a sombra cai da curva sôfrega
      dos meus lábios, sinto que me falta
      um girassol, uma pedra, uma ave qualquer
      coisa extraordinária.
      Porque não sei como dizer-te sem milagres
      que dentro de mim é o sol, o fruto,
      a criança, a água, o leite, a mãe,
      o amor,

      que te procuram.

      (Herberto Helder)

           

        MIA COUTO

        “Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”

        Mia Couto no livro “Antes de Nascer o Mundo”.

           

          O livro dos abraços

          “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
          Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
          Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
          E, quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: ME AJUDA A OLHAR!”
          (Texto de “O LIVRO DOS ABRAÇOS” – Eduardo Galeano)