Delírio – Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa (1908-1967)

No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios…
Deixa aberta a janela…

Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna…
Apaguemos a luz…

Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?…

Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti…

     

    Os anjos de Novembro

    Imagine que seu telefone toque e que, do outro lado da linha, uma voz amiga anuncie simplesmente: “Os anjos estão chegando”.
    Suponha que você abandone qualquer coisa que esteja fazendo e, incrivelmente tocada pela inusitada mensagem, dirija-se até a porta de entrada de sua casa, abra-a e convide: “Entrem! Sejam bem vindos!”
    O dia apenas começa a se delinear, cedo, cedo, nesse tempo de verão. Os primeiros raios de sol brilham tímidos, por entre as longas saias das samambaias penduradas na varanda, enquanto os anjos, três ao todo, acomodam-se ali, bem à sua frente, no sofá da sala; mais pressentidos do que visualizados: As leves e longas asas entreabertas, as vestes translúcidas, os pés calçados em finas sandálias de cetim, os cabelos, descendo em ondas pelos ombros. Você se intimida. Não sabe ao certo como tratá-los. Afinal, é a primeira vez que os recebe assim, também anunciados.
    “Será que gostariam de tomar um chá de bergamota?” “Preferem um suco natural?” “Um copo de água fresca da moringa de barro?”
    Na sala expande-se o silêncio e um singular aroma de jasmim e musgo. Você fecha os olhos e se acomoda na poltrona buscando nos escaninhos da memória todas as imagens angelicais arquivadas desde a infância: O anjo da guarda de túnica azul celeste, os braços estendidos, emoldurado na gravura sobre a cama, guiando-a através de tantas pontes sobre abismos; os gordos e sorridentes querubins espiando-a dos ícones do quarto; o arcanjo sério e esguio, apontando sua espada fulgurante para a saída do perdido paraíso; o suave anjo da Anunciação…Os serafins, os anjos barrocos, os góticos estampados em tantos afrescos de templos seculares… A que casta, a que estirpe os que hoje visitam-na, pertencem? Parecem tão humanos! Não fosse pelas asas…
    Você entreabre os olhos e percebe que eles a observam fixamente.
    “Viemos aqui para ouvir seus pedidos” dizem sem falar. A estranha melodia de sua fala reverbera em sua cabeça e você se emociona. Pede-lhes: “ Deem-me um tempo…por favor!” Necessita de acalmar o coração, controlar a ansiedade. Quer pensar. Pedir com qualidade, sem esquecer-se de nada. Pedir para todos, pois sabe que, se egoisticamente desejar só para si, poderá espantá-los, criaturas fraternas que são. Concentra-se então em seus desejos. Pede-lhes alegria, prosperidade, justiça. Saúde, paz, tolerância, harmonia. Enumera todos os detalhes. Pede para as crianças do mundo, para os filhos, os amigos e os inimigos, como se lhes falar fosse a coisa mais natural do mundo! Então, cala-se e espera. E no silêncio poderoso que se instala tem a certeza de que abriu seu coração. A manhã avança. Os raios de sol já alcançam-na e ferem seus olhos. Você desperta. “Que sonho lindo eu tive”, recorda! Dirige-se à cozinha para preparar o lanche da família. Abrindo a porta da varanda, uma pena branca, longa, inconfundível, estremece entre as samambaias e voa leve, em sua direção. No ar, um perfume de flores e de anjos permeia esse dia único de novembro, colorindo-o de paz e luz…(Ludmila Saharovsky)

    Para Benny Lima. Ela sabe porquê!

      

      Sempre palavra

      I

      Busco o poema
      Lá onde o mar transborda
      E o céu assoma
      Ostentando já a lua
      Refletida.
      No olho da gaivota
      O sol se deita
      E a palavra nasce
      Do silêncio
      Assim…
      Quase perfeita
      Envolta pela areia
      E pela espuma

      II

      Busco o poema
      Ou ele é quem me espreita
      Em meio à areia brilhante
      Liquefeita
      Como se fosse um verbo
      A imantar-se
      A transformar-se
      Em som, palavra, grito
      Vindo da sombra
      Para o atrito
      Em seu rumor eterno

      (Ludmila Saharovsky)

        

        Manoel de Barros

        Lápis
        Manoel de Barros

        É por demais de grande a natureza de Deus.
        Eu queria fazer para mim uma naturezinha
        Particular.
        Tão pequena que coubesse na ponta do meu
        Lápis.
        Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
        meu quintal.
        No quintal ia nascer um pé de tamarindo apenas
        Para uso dos passarinhos.
        E que as manhãs elaborassem outras aves para
        Compor o azul do céu.
        E se não fosse pedir demais eu queria que no
        Fundo corresse um rio.
        Na verdade, na verdade a coisa mais importante
        Que eu desejava era o rio.
        No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
        Dia jogar cangapé nas águas correntes.
        Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
        Particular:
        Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

             

          Quando minha mãe se foi ( aos 52 anos de idade) eu comecei a escrever – para amenizar e entender a dor que sentia frente à morte – poemas que batizei com o título “No útero de Deus”. Dividi o livro em três fases: Fase do medo, fase da aproximação e fase da entrega. A trajetória desse livro seguiu um caminho independente. Ele foi trabalhado em oficinas de redação e criação literária, pela minha amiga Dyrce Araujo e acabou virando trabalho de conclusão de curso universitário, do hoje professor, ator e um grande e querido amigo, Roberval Rodolfo. A seguir transformou-se em peça teatral que percorreu por dois anos o Vale do Paraíba. Os poemas foram também traduzidos para o russo por Irina Orlova. Até hoje o livro não foi editado. Talvez nem precise mais! Dele, publico para vocês um poema da Terceira fase, da entrega. Saudades, minha mãe! Saudades!

          Quero que me cubras
          Com terra fresca e fértil.
          Flores nascerão de mim
          Feito palavras
          E transmutada
          Em frutos e sementes
          Renascerei em ti
          Vestida de primavera.
          (Ludmila Saharovsky)

          Томлюсь мечтою:
          Чтоб всю меня
          Прохладной,
          Плодородною землёю
          Покрыли,
          Чтоб родились цветы во мне,
          Отлитые словами,
          И, превращённые
          В плоды и семена,
          В тебя обратно возвратились.
          (Tradução para o russo de Irina Orlova)

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