Ciranda de Poesia no Bola de Meia

Foi muito especial e produtiva a noite de Ciranda de Poesia, no Espaço Cultural Bola de Meia em São José dos Campos, na última quarta feira, dia 27 de junho. Depois da projeção do curta metragem de Irina Orlova, sobre Solovki, intitulado Labirintos fui apresentada aos participantes (auditório lotado) pelo meu querido amigo, o sociólogo e escritor Alcemir Palma. Falar sobre o Gulag de Solovki e o Polígono de Butovo, onde centenas de milhares de russos foram exterminados, a sangue frio, pelo regime comunista é um assunto que não se esgota. O interesse e a participação da plateia com perguntas e colocações, fez com que não sentíssemos o passar das horas.A professora, poeta e revisora, minha particular amiga Dyrce Araújo fez um emocionante depoimento sobre suas múltiplas leituras do livro e sua visão deste terrível capítulo de nossa historia contemporânea. Deixo aqui meu agradecimento pelo carinho com que fui recebida por todos, pela oportunidade de falar deste meu trabalho mais recente, pelos presentes que me ofertaram, pelo delicioso lanche que nos aguardava nessa noite fria, e parabenizar a equipe doCentro de Cultura Bola de Meia, conduzida há tanto tempo e com tanto sucesso pela sua Presidente, Jacqueline Baumgratz, pelo trabalho que desenvolve em prol da cultura de nossa região. Um beijo a todos! (Ludmila)

    

    Aos Poetas – Miguel Torga


    Somos nós
    As humanas cigarras!
    … Nós,
    Desde os tempos de Esopo conhecidos.
    Nós,
    Preguiçosos insectos perseguidos.

    Somos nós os ridículos comparsas
    Da fábula burguesa da formiga.
    Nós, a tribo faminta de ciganos
    Que se abriga
    Ao luar.
    Nós, que nunca passamos
    A passar!…

    Somos nós, e só nós podemos ter
    Asas sonoras,
    Asas que em certas horas
    Palpitam,
    Asas que morrem, mas que ressuscitam
    Da sepultura!
    E que da planura
    Da seara
    Erguem a um campo de maior altura
    A mão que só altura semeara.

    Por isso a vós, Poetas, eu levanto
    A taça fraternal deste meu canto,
    E bebo em vossa honra o doce vinho
    Da amizade e da paz!
    Vinho que não é meu,
    mas sim do mosto que a beleza traz!

    E vos digo e conjuro que canteis!
    Que sejais menestreis
    De uma gesta de amor universal!
    Duma epopeia que não tenha reis,
    Mas homens de tamanho natural!
    Homens de toda a terra sem fronteiras!
    De todos os feitios e maneiras,
    Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
    Crias de Adão e Eva verdadeiras!
    Homens da torre de Babel!

    Homens do dia a dia
    Que levantem paredes de ilusão!
    Homens de pés no chão,
    Que se calcem de sonho e de poesia
    Pela graça infantil da vossa mão!

    Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, (São Martinho de Anta, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi um dos mais importantes poetas e escritores portugueses do século XX. Destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios. Escritor de um humanismo lírico,publicou mais de 50 livros.
    (Este poema foi retirado de seu livro Poesia Completa volumes I e II)

      

      Varal de Poesias: Sempre Palavra


      Amanhã a Fundação Cultural de Jacareí em conjunto com a Academia Jacareiense de Letras estará realizando, a partir das nove horas da manhã, e avançando pela tarde, no espaço cultural Pátio dos Trilhos uma feira de livros dos escritores jacareienses. Será estendido um Varal de Poesia, para que todos os que queiram participar e colorir o Inverno Cultural de letras, tenham essa oportunidade.
      Publico aqui, dois poemas, de alguns que escolhi para expor no Varal (Ludmila)

      Sempre palavra
      I
      Busco o poema
      Lá onde o mar transborda
      E o céu assoma
      Ostentando já a lua
      Refletida.
      No olho da gaivota
      O sol se deita
      E a palavra nasce
      Do silêncio
      Assim…
      Quase perfeita
      Envolta pela areia
      E pela espuma

      II
      Busco o poema
      Ou ele é quem me espreita
      Em meio à areia brilhante
      Liquefeita
      Como se fosse um verbo
      A imantar-se
      A transformar-se
      Em som, palavra, grito
      Vindo da sombra
      Para o atrito
      Em seu rumor eterno

      (Ludmila saharovsky)

        

        Conto mínimo: A caminho

        Colecionava elefantes: indianos, africanos, cartagenenses, persas. De louça, madeira, cristal, pedra da lua, pedra da rua…
        Todas as noites sentava-se sobre o carpete verde e admirava sua manada, viajando com ela pela imaginária floresta da sala.
        Na primeira excursão demorou-se alguns minutos.
        Na segunda, algumas horas.
        Na terceira, já com experiência adquirida, guiou seus elefantes até o oásis escondido entre as dunas do jardim, e lá começou uma nova história.
        (Ludmila)

          

          Conto mínimo: Viagem


          Embarcou na estação para o inadiável compromisso.
          Distraiu-a a beleza da paisagem, o sol se pondo no horizonte, o V dos pássaros cruzando o céu em vôo de regresso.
          Abstraiu-se tanto que, chegando ao seu destino, esqueceu-se a que veio, assim, nem saiu do trem, iniciando a viagem de retorno. Talvez na estação de embarque, conseguisse relembrar.
          Reembarcou no trem para o inadiável compromisso…
          (Ludmila)
          (Ofereço este conto mínimo ao meu amigo Alcemir Palma, porque ele os coleciona e distribui entre os amigos)

            

            Correspondência (do verbo corresponder)

            Amigos, pensei muito se publicava essas correspondências, ou não!
            Mas elas me tocaram de uma forma tão profunda, que resolvi partilhá-las com vocês!
            Obrigada, meus tão queridos, por todo esse carinho, que aceito e agradeço!
            Grande beijo!(Ludmila)

            Mãe!
            Começo a ler seu livro e começo a chorar! Quantas tristezas os bisavós e avós enfrentaram! Mas graças a Deus ao menos eles sobreviveram. Sinto uma pena muito grande não ter podido conviver por mais tempo com os bisavós, mas tenho boas lembranças! Lembro-me, mãe, do bisavô fazendo as velas! E sempre vestindo uma túnica preta! Os pãezinhos da igreja também! Como eram gostosos! E os panetones todos enfeitados, acho que com glacê, no qual grudavam bolinhas bem miudinhas coloridas! Quando ele ia lá em casa, com um incensário, e nos benzia, e a casa também. Da bisavó lembro, como se fosse hoje, que quando ficava lá ela nos colocava, eu e o Sérgio, para rezarmos em russo, e depois ela molhava o dedo no óleo do incenso e fazia o sinal da cruz em nossas testas! E ela não falava português. Lembro-me do quarto que ela dormia, que ficava juntamente com os outros dois quartos no andar de cima, bem em frente à escada. Lá tinha duas camas, e creio que uma delas era do bisavô, que deve ter morrido antes dela, pois vovó Olga nos colocava para dormir lá, um em cada lado da cama, e no meio, colocava um saco de água quente para aquecermos nossos pés, traduzindo historinhas russas até pegarmos no sono! Ah! Também tinha um endredon branco de penas, que de tão quente, só ele bastava!
            Lembro-me também do bisavô celebrando missa…acho que ele falava alguma coisa como:* “góspede spaciulus…góspede spaciulus…góspede spaciulus” (rsrs)…apesar de não entender o que falava, gostava muito porque era toda com uma fala cantada! E aqueles ícones, as velas acesas, uma igreja que me trazia muita beleza e paz. E tinha também o coral! Neste, lembro-me do vovô Dieda cantando.
            Veio à lembrança também o quarto da Babuska…lá tinha uma cômoda com gavetões, e em cima lembro-me de um ovo de madeira tipo caixinha e do broche que ela me deu que guardava na primeira gaveta. Guardo a sete chaves este broche! Meu maior tesouro!
            Todas essas lembranças vêm à tona por causa da leitura do seu livro!
            Mãe, que aula de história é o Tempo Submerso! Você é muito boa nisso! Lembro-me também de inúmeras vezes que sentava comigo para estudar história! Se não fosse por isso…ai ai ai… Obrigada, mãe, por trazer tão boas lembranças, mesmo que num enredo de tanto sofrimento!
            Apesar de no desfecho do livro relatar não ter encontrado o nome dos nossos nos registros dos cruelmente assassinados, trouxe à tona uma verdade que poucos conhecem, de russos matando os próprios russos. Que horror! E não honrou apenas as memórias dos nossos parentes, mas de todos aqueles que morreram sem culpa, ou mesmo direito de defesa, no mais profundo anonimato.
            Só tenho que te parabenizar e Te Amar ainda mais por mais este trabalho.
            Luca
            *A ladaínha era: Góspodi Pamilui…Góspode pamilui, tradizindo:Graças a Deus!
            Sergio Hamilton

            LUD! SeuTempo Submerso, vc nem imagina como estou A – DO – RAN – DO!
            Até hoje, o livro que mais me tocou fundo foi: Recordações da Casa dos Mortos de Dostoiévski!
            Pelo poder do homem em transformar a injustiça, a loucura e todo tipo de miséria humana
            em algo tão sublime quanto a literatura russa!
            Agora lendo Ludmila compreendo, com outros sentimentos aquela “vida” descrita por vcs dois!
            Ah! de que adianta eu ficar aqui buscando elogios à fazer!
            Sei dizer, que um livro só me serve, pelo que ele deixa em mim, Tempo Submerso está e ficará em mim.
            É APAIXONANTE amiga! Gente do céu, que história fascinante…que sorte a minha ter esse tempo para lê-la,
            sem hora marcada para parar, sem interferências…
            Confesso, não quero que o livro acabe, isso acontece com todo livro “dos bons”, a gente se apega, não quer que chegue o fim!
            Conta mais, conta? Te quero saber muuuito! Continue a história, escreva logo os outros capítulos, fale de sua vida! Encantadora “lastutchka” fez da triste realidade uma linda história! QUERO SEMPRE TE LER! bjin
            Cris Reis

            Querida Lud
            Recebi o seu livro mandado em 08/05/12 na Sexta-Feira e terminei de ler ontem. Em dois dias. Não conseguia parar de ler. Não que a historia era prazerosa, entretanto, o relato da Historia Russa e da sua família me prenderam. Algumas vezes tive que parar de ler para absorver a informação e outras para chorar com você na narrativa.

            Amiga, não tinha ideia de que Stalin tinha feito a monstruosidade que fez. Matou pessoas pelo o que eles eram (aristocracia) e tantos outros só porque podia. Incrível! Ele estava pessoalmente envolvido nas execuções, assinando documentos e escolhendo datas para o fuzilamento. Não da para acreditar que com tantos problemas no pais para resolver, ele tivesse tempo e o sádico prazer de fazer isso
            Adorei o relato da vida dos teus avos. Incrível o conhecimento que tinham e que passaram para você. Sofri com o desespero da tua mãe angustiada por noticias dos seus. Que pena que não a conheci. Lembro-me do teu pai e é impressionante como não podemos ter a mínima ideia do que uma pessoa passou na vida olhando para eles num determinado período da vida deles, como o conheci já ancião. Chorei muito com a passagem da morte do teu avo, quando o visitastes para dizer adeus e ele não se virou para ver-te. Apesar de te adorar, ele não conseguiu aceitar que buscastes Deus de formas diferentes. Ha tantas estradas que levam a Deus mas ele só via uma e sofreu muito sabendo que não compartilhavas de sua fé. Que infância rica tivestes! Rica em historia, arte, e conhecimentos diversos. Por isso es tão talentosa.

            Achei muito interessante a teoria dos “campos mórficos”. Faz sentido.

            Amiga muitíssimo obrigada por dividir conosco essa experiência impar. PARABENS pela publicação dessa obra importante para divulgar ao mundo os horrores do passado para, como no holocausto, a humanidade saiba a verdade e os seres humanos possam aprender e desenvolver para saírem dos círculos reencarna tórios e viver em moradas mais elevadas. A era de Aquário começa no ano que vem e esta na hora de remover o “joio” para que o planeta passe do status de expiação para regeneração.

            Mana, mais uma vez, Parabéns!
            Mirian Inês Ferreira, Las Vegas, EUA

            Minha querida Lu Terminei de ler seu livro. Quando vc fez a viagem que o originou, eu me lembro que voltou com a premência da responsabilidade de levar as informações ao público, não só do Brasil, mas do mundo todo. Então começou a escrever e colocar os dados em texto. Era um esboço, tentando dar a ele uma forma que levasse provavelmente, a um livro. Finalmente o livro veio ao mundo, nasceu. As primeira páginas me lembraram a sensação original de estar lendo uma poesia, depois ficou mais incisivo, mais narração. Veio com a qualidade das obras que nos prendem a atenção, que apesar do tema pesado, impactante, é apresentado de forma suave, entremeado de lembranças da infância, onde a figura do avô preenche as lacunas emocionais da menina. Nos choca pelo que revela, mas não cansa nossa sensibilidade, não nos dá gana de deixá-lo de lado e ir ler uma revista do Tio Patinhas. Está primorosamente organizado e redigido. É mesmo uma obra destinada a fazer a diferença. Seu objetivo, que no começo era cumprir uma promessa feita a seu avô, a de encontrar seus mortos, resvalou para denunciar os horrores que uma mente doentia, insensata, medrosa é capaz de produzir. E então, a nossa responsabilidade em cada tragédia que ocorre nos anais da História da Humanidade, explicada pela ação dos Campos Mórficos. Fiquei pensando sobre essa nossa responsabilidade. Para atuar como o fizeram, tanto Lenin quanto Stalin, precisaram de poder. Um poder temporal, tirado de onde? Quem lhe deu esse poder? Por que foi tão fácil? Esses são holocaustos recentes da humanidade, mas se olharmos para trás no tempo sempre vamos encontrar, nas mais diversas etapas da história, holocaustos semelhantes: escravidão aviltante; perseguições religiosas que exterminaram povos inteiros, invasões e dominações( exemplo a colonização espanhola nas Américas, inglesa e francesa na África, Ásia, etc) a “santa” inquisição, a dominação romana com a matança de judeus na época de Jesus e antes disso no Egito, e por aí vai até onde a memória alcança. Conclusão A humanidade só sairá desse sofrimento quando perceba que só existe o Espírito, (ou a Energia Primordial, que engloba tudo que É e tudo que somos) o resto é ilusão causada pelo esquecimento desse fato. Só quando voltamos nossa consciência para o Espírito( ou quando nos conectamos com ele) é possível viver a verdadeira vida. Então talvez fique claro o princípio “o que acontece com um, acontece com todos” e possamos, finalmente viver em paz.
            Com Amor
            Dolores Sanchez Guerrero

              

              Diário em Solovki – Memórias de além mar

              Ah…como é bom poder tocar de novo a infância, olhando esta paisagem pela janela: O pomar carregado de macieiras… No vaso de boca larga, flores recém colhidas no campo… Sobre a mesa da sala, posta para o lanche, a sempre presente geléia de morangos (feita em casa) o bule de água quente para o chá e o insubstituível pote de torradas. Tudo tão familiar e íntimo. Tudo tão presente nesta tarde que desce, vestida de sol, sobre a casa hospitaleira na qual me encontro. Sombras de rostos conhecidos afloram de dentro da claridade, interrogando-me sobre tantos caminhos que já trilhei. Inquirindo-me sobre atos, razões, sentimentos. Sobre os vivos e os mortos. Não! Agora não!eEu peço!Não me perguntem nada! Deixem-me ficar apenas, ancorada neste silêncio! Permanecer assim, despida de qualquer raciocínio, nesta relação pura com a quietude do corpo e da alma. Sem movimentos. Sem respostas. Sem compromissos. Tomada unicamente pelo prazer de saber-me em sintonia para maravilhar-me novamente com cores, sons, texturas. Livre para mergulhar no universo de uma outra casa, aquela, da infância, embutida na memória, abrindo portas muito devagar para não quebrar o encantamento. Para poder sentir de novo a vibração particular e única que alguns espaços produzem e refletem em nós. Estremecer de alegria incontida ante a visão do ícone da Virgem de Kiev, iluminado pelo lampadário, das ameixas e pêras sumarentas guardadas na fruteira, da abundancia de pão e mel na mesa sempre posta da cozinha, a toalha de flores miúdas e vermelhas, bordadas em ponto de cruz pela avó. Abraçar cada livro, cada foto, cada quadro, cada bibelô. Rever cômodo por cômodo e sua mobília improvisada. Perambular pelos recantos secretos do jardim, reconhecendo plantas e insetos. Sentar-me à velha escrivaninha colocada no terraço e reler os diários escritos em caligrafia ainda não muito definida, por uma menina que anelava um futuro feliz, e o obteve. Com alguns contratempos, é claro, mas,noves fora, as somas e divisões deram sempre certo. Toco-me, como que em busca de um reconhecimento. Toco-me do passado. Toco-me plena de ternura pela mulher que surgiu, o rosto aberto às inevitáveis tempestades. E também às tardes de sol poente, como esta. Toco-me e entro em contato com todas as mulheres que me precederam nesta família na qual nasci. Relembro seus temores, suas lutas, suas vitórias. As lágrimas de saudade pela vida que se deixou para trás, do lado de lá do oceano. Os aventais sujos de farinha, os domingos passados na faxina, a leitura de poemas infantis de Puchkin, à luz daquele abajur artesanal que imitava um cogumelo. E sombras de mãos inventando cenários nas paredes povoadas de Babas Yegás e fadas salvadoras. Toco-me e uma vertigem me atravessa a alma. Esta sou eu, no futuro, resgatando minha própria história. Esta sou eu, viajando pela pátria de meus antepassados, alimentando-me de saudades e descobertas. Esta sou eu, sou todas nós, tomando chá de jasmim numa datcha longínqua, reunindo passado e presente que tecem meu futuro. Sim, esta sou eu……
              (Ludmila Saharovsky)

                

                Confidências

                Rememoro seu rosto. Colho seus gestos de carinho. Às vezes, sinto necessidade de fechar os olhos para lembrá-lo melhor. Para sentir o timbre de sua voz reverberando em minha alma. Para percorrer com inteireza este itinerário que você deixou traçado.
                Estando só, refugio-me na escrita: árdua ocupação de compreender a vida através dos signos. Alguns de luz. Outros mergulhados ainda numa nebulosidade que, inconsciente, também, por vezes, me acompanha. Escrevo para falar-lhe de meus sentimentos e emoções, mesmo sem a certeza de que me lerás, um dia.
                Caminho pela casa, reconhecendo agora nela, um território marcado por sua passagem: aqui uma agenda, ali uma camisa, o incenso, nosso pijama compartilhado, os rachis. No livro de poemas, um bilhete seu falando de amor. O cheiro ocre de madeira queimada vindo da lareira da sala, o vinho reservado para as conversas noturnas, os jornais.
                Transporto-me, às vezes, também, para um outro espaço inundado de livros. A cama, que compõe um cenário minimalista, está vazia. Recortes, pastas, anotações amontoam-se sobre a escrivaninha. Um armário engole a desordem de roupas sobrepostas. Ali, uma tarde, meus dedos desfiaram seus cabelos e pela primeira vez seus braços embalaram minhas fantasias e os sonhos.
                Quero viver uma paixão tranqüila, você me disse, como se o amor pudesse existir sem sobressaltos!
                Quero viver uma paixão tranqüila, e eu desejosa de protagonizá-la, adentrei na eternidade, observando meu próprio nascimento, nessa outra concepção de tempo. Um tempo oblíquo, eu diria…
                Hoje, digo seu nome e estremeço. Estremeço de saudades, desse tempo que não se revelou.
                (Ludmila, anotações para o monólogo A pedra e o lago)

                   

                  Conto Mínimo: Modernidade

                  Não tinha mais jeito. Ela sobrava em casa.
                  Desde que a máquina chegou, que o marido, que os filhos, que os amigos viviam hipnotizados.
                  Emitindo estranhos sons e luzes o instrumento resolvia tudo: a conta bancária, as compras da semana, os deveres de escola, as horas de lazer e de prazer. Sua intimidade com o circuito foi surgindo lenta. Primeiro a rotina do pó, retirado a cada dia, depois, o suave toque nas teclas, a abertura de janelas e o diálogo estabeleceu-se, embora em língua estranha. Íntimas tornaram-se nas tardes vazias, tão íntimas que, um dia, chegando a família em casa e dirigindo-se diretamente à sala do computador, botões ligados, a mãe sorriu-lhes feliz, de dentro da tela. (Ludmila)

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