O sonho que me sonha

Imersa no silêncio, respiro o doce aroma das palavras que ainda se abrirão
na manhã que se gesta do outro lado do horizonte,
lá onde as estrelas se acomodam em constelações
e as moiras tecem o destino humano.
Durmo e a noite me absorve, encorpada e lenta.
O céu sorri com sua boca de lua semi aberta, mal se importando com o frio que
congela a rua, a casa, os muros e suas heras, os cães insones e as roupas nos varais.
Dormem também, cansadas, as palavras. Elas que descrevem as sombras…
Não haveria sombras sem a força que permeia as palavras, nem luz, nem sangue, nem poemas.
Como entender a dor do mundo sem palavras?
Ou essa quietude plena, ou o amor?
Durmo e não sei se sonho, ou se o sonho sonha a mim!
(Ludmila)

     

    Contos mínimos: O colecionador

    A borboleta vermelha, acomodada entre vidros, na parede da sala, foi o primeiro inseto de minha coleção.
    A ela seguiram-se grilos, besouros, mariposas, libélulas, escaravelhos, que ocuparam caixas, gavetas,estantes, prateleiras. Hoje, meu filho veio confirmar que seguirá meus passos. Preso por finos alfinetes ao veludo negro, ele veio mostrar-me, capturado, o sorriso da primeira namorada.
    (Ludmila Saharovsky)

      

      Rota das Missões – Santo Ângelo Custódio


      Terminando nossa viagem pela Rota das Missões, paramos em Santo Ângelo Custódio, último assentamento dos jesuítas.
      Santo Ângelo foi o último município dos Sete Povos das Missões a ser fundado, em 1706, pelo jesuíta Diogo de Haze, belga de nascimento. Mesmo com uma estrutura semelhante às demais reduções, o povo de Santo Ângelo prosperou muito economicamente, tornando-se, na época, o maior produtor de erva-mate e o mais rico. A derrocada do Sétimo Povo das Missões Orientais do Uruguai acontece pelas mesmas causas das outras seis reduções: o litígio formado com a demarcação estabelecida pelo Tratado de Madrid (1750) e suas consequências políticas.
      Seus primeiros habitantes, descendentes de paulistas e imigrantes alemães, aproveitaram as pedras do antigo colégio e da Igreja Jesuítica para edificar suas casas e uma outra igreja no mesmo lugar da antiga, mas sem afetar o traçado urbanístico missioneiro.

      Catedral Angelopolitana

      A nova Catedral Angelopolitana está localizada no mesmo lugar da primitiva igreja missioneira de 1707. Seu estilo imita a catedral da Redução de São Miguel Arcanjo, com traços renascentistas e barrocos. A fronteira está encimada por imagens dos santos padroeiros dos Sete Povos: São Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, São João Batista, São Lourenço Mártir, São Miguel Arcanjo e Santo Ângelo Custódio (Santo Anjo da Guarda). No seu interior encontra-se uma imagem em madeira do Cristo Morto, de origem missioneira, em tamanho natural, datando de 1740. Ao seu redor está instalado o Museu a céu aberto, resguardando os achados nas escavações arqueológicas realizadas no local. Na praça encontra-se também o principal museu da cidade: Museu Municipal Dr. José Olavo Machado. O prédio onde está instalado o museu foi residência do último intendente e primeiro prefeito municipal, Dr. Ulisses Rodrigues e suas paredes foram construídas com as pedras retiradas da igreja original dos jesuítas, conforme podemos observar nas fotos

        

        Pelas ondas do rádio


        Era início de um junho frio e enevoado. Morávamos há pouco no Brasil e, naquele dia, especialmente, a mãe estava mais ansiosa do que de costume, porque depois de longas semanas de horas extras, o pai finalmente traria um pouco de dinheiro a mais, para que ela colocasse as finanças em dia. E o pai chegou com um misterioso pacote debaixo do braço. Recordo-me de que nos reunimos em volta da pequena mesa da cozinha, em suspense. Desviando-se dos olhares de censura intuídos, da mãe e da avó, ele desembrulhou o que seria a primeira extravagância de sua nova vida, e, em conseqüência, também da nossa. Numa elegante caixa retangular de madeira envernizada de preto, com um vistoso visor de vidro milimetricamente marcado por números verde claros e com dois botões, lá estava ele: nosso rádio que captava ondas médias e curtas! Tão logo foi ligado à tomada, recordo-me da emoção indescritível ao ouvir, pela primeira vez, a voz nostálgica de um cantor sertanejo interpretando uma música que dizia: “eu nasci naquela serra, num ranchinho beira-chão…” Eu não entendia nada do que a letra dizia, mas a melodia era linda! Em compensação, o sermão que o pai ouviu! Mas, alheio a tudo e a todos, ele girava prazerosamente os botões buscando uma fina sintonia, e, entre uma onda sibilante e outra, captava a transmissão desejada: o milagre da eletrônica! Podíamos, se quiséssemos, ouvir notícias da França, da Alemanha, e, com um pouquinho de persistência e a utilização da longa antena, captar a voz da própria União Soviética! Eu mal conseguia disfarçar minha felicidade. Eu e o avô: únicos cúmplices daquele jovem chefe de família que agora, excitado, chegava mais cedo em casa para dar-se ao luxo de usufruir daquela diversão: mesmo com os sapatos necessitando urgente de uma meia sola, o colarinho da camisa puído e as calças há muito pedindo um novo par. Assim que eu despertava, saía correndo para ligar o mágico aparelho de válvulas que enchia a casa de música, anúncios e notícias que me distraíam e alegravam. Deitava-me no chão ao lado da mesinha que lhe servia de suporte e, hipnotizada, cantarolava e imitava as frases dos locutores. Um dia, tomada por um sentimento egoístico de posse (eu o queria só para mim) tive uma brilhante idéia: Utilizando um grosso parafuso, caprichosamente, bem no centro do painel, risquei as primeiras letras de meu nome: LUD. Agora sim, o rádio me pertencia! De nada adiantou o desdobramento do avô tentando proteger-me da fúria do pai quando chegou em casa e viu o estrago. Creio terem sido as primeiras pesadas e dolorosas palmadas que levei, em toda minha vida. Mas as iniciais ficaram ali, gravadas para sempre naquele meu primeiro objeto de desejo. Cresci ao som de Marchinhas Carnavalescas, Aquarelas do Brasil, Bonecas Cobiçadas e também de tangos e boleros, além da inconfundível e solene abertura de O Guarani para a Hora do Brasil. Adorava quando a gripe me alcançava na mudança das estações. O rádio então ficava à minha disposição, distraindo-me e me fazendo companhia. Quando nossas finanças ficaram um pouco mais folgadas, o primeiro presente que pedi não foi uma boneca, relógio ou bicicleta. Quis ter um rádio, então já de pilhas, que, na cabeceira de minha cama ajudava-me a adormecer e a sonhar ao som de Nora Ney, Dolores Durant, Ângela Maria, Dóris Monteiro, Dalva de Oliveira, Os Cantores de Ébano, Almir Ribeiro, Miltinho, Cartola. Coisa boa dormir ao som de “A noite do meu bem”: Hoje eu quero a rosa mais linda que houver/ E a primeira estrela que vier/ Para enfeitar a noite do meu bem/ Hoje eu quero a paz de criança dormindo/ E o abandono de flores se abrindo/ Para enfeitar a noite do meu bem… Naquele tempo, a insônia não se instalava como agora, e a noite ia realmente “dormir encabulada, na passarela da madrugada”…
        Que tempo mais feliz!
        (Ludmila Saharovsky)

          

          O verbo Amar


          Quem entende o significado de um termo, em sua essência, tem, com certeza, uma trajetória pessoal muito mais rica e proveitosa, pois desenvolve a capacidade de ir além da palavra escrita. Quem realmente conhece o conteúdo de um vocábulo, utiliza-o com mais força, adquire um poder peculiar, uma vez que algumas palavras possuem a faculdade de construir ou destruir outro ser humano.
          Não é por acaso que o Gênesis inicia-se com a criação do céu e da terra através do Verbo, através do desejo proferido: Faça-se a Luz! E a luz se faz.
          A palavra, portanto, é uma manifestação não apenas do conhecimento, como de magia, tanto que algumas delas são transmitidas em situações especiais, sussurradas, a poucos iniciados.
          Sabemos que povos antigos como os egípcios, os chineses, os japoneses, possuem vários graus de escrita, destinados a diferentes grupos de indivíduos, de acordo com sua evolução espiritual e inteligência emocional.
          A neurolinguística, hoje, modifica padrões de comportamento através da linguagem que atua em nosso cérebro a nível do inconsciente.
          Palavras, portanto, constituem-se em iguarias raras. Precisamos aprender a degustá-las, dissecá-las, decodificá-las, penetrar em sua essência. Necessitamos de conhecê-las em sua total densidade ou completa volatilidade. Dominá-las não nos torna apenas mais ricos de significados e entendimentos; nos deixa mais sábios. Mais lapidados. Mais conscientes. Mais tolerantes. Quando descobrimos, por exemplo, que a palavra trabalho vem de tripalium – um instrumento de tortura composto de três paus, numa espécie de cruz – nossa compulsão por estarmos sempre fazendo alguma coisa, não é abalada? Não começamos a refletir sobre o sentido da ação?
          Mas, voltemos ao verbo amar, que afinal de contas deu origem a esta crônica. Qual a sua raiz?
          Aprendo com *Affonso Romano de Sant’Anna, que se remete a Bent Paroli, para nos ensinar que “a raiz da palavra amor é egípcia e não latina. Também nada tem a ver com o “ama” grego, embora este signifique “juntos”. Os gregos também falam de “eros”, mas a raiz dessa palavra indica “atividade”.
          O vocabulário egípcio traz a raiz MR. Parece estranho. Os egípcios não usavam vogal. Mas eles escreviam assim e na hora de pronunciar, a vogal aparecia. E o fato é que MR se pronunciava “amer”, “amor”. Escrita com hieróglifos a palavra MR era representada por uma espécie de pá ou cavadeira de camponês abrindo a terra. Há um sentido agrário de fecundação cósmica. Amor, então, era como um ato de cultivar a terra.”

          Este povo que reverenciava o milagre dos frutos e sementes, deixou-nos a raiz de uma palavra que hoje se vulgarizou tanto, que mal sabemos seu real conteúdo. Amar virou sinônimo de ficar, desejar, possuir, transar.
          Se voltarmos, no entanto, à sua raiz primitiva, entenderemos o quanto é significativa a imagem de semear-se em terreno fértil para que os frutos não se percam na aridez, e a delicadeza deste sentimento único prevaleça!
          O fato é que precisamos resgatar o exercício do amor, porque ele nos unge, ele nos transforma em matéria prima para a perpetuação dos mistérios da vida, em terra fértil para o inicio desta semeadura em nosso próprio interior, para que floresça um jardim de plantas raras chamadas: respeito, consideração, cuidado, carinho, dedicação, cumplicidade, saudade.
          É isso! Um lindo dia de enamorados para todos nós.
          Ludmila Saharovsky
          (Crônica publicada na Revista Absollut edição maio/junho 2012)

          *Sant’Anna, A. R. de. (2003). Amor, o interminável aprendizado. In A. R. de Sant’Anna. Melhores crônicas de Affonso Romano de Sant’Anna. São Paulo: Global.

            

            Sinfonia de inverno


            Começa o tempo em que tudo hiberna.
            Somente as deusas ancestrais encontram-se atentas em seu mister
            de bordar a noite de estrelas e coalhar as águas do mar com rendas de espumas.
            Suas vozes ecoam nos campos e nas florestas em cantigas de ninar.
            Dormem os pássaros e as flores.
            Olho para a falésia que contém a eternidade: uma ternura fecunda perpassa-me a alma e me remete ao fogo e à lava. Eles que moldaram as montanhas antes que as florestas as vestissem de veludo e vozes.
            Eternidade…esse conceito acaricia meus sonhos, na medida em que me reconheço um breve sopro no coração do tempo.
            Minha memória passeia por abismos onde o eco do vento reina soberano, capturando o grito das águias e dos coiotes que compõem a sinfonia do inverno que se aproxima, grave.
            E a lua surge, soberana, no céu que nos envolve.
            (Ludmila)

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