Jacareí, 360 anos

Era 1975, e a Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes de Jacareí, lançou um concurso de crônicas, contos e poesias intitulado: A Cidade e o Rio, para o qual eu enviei este texto que acabou sendo o vencedor na categoria de crônicas.
Por conta dele eu recebi uma “Moção Congratulatória” da Câmara Municipal de Jacareí, naquele ano, e meu texto foi publicada com destaque nos jornais da cidade.
A partir de então, fui convidada para ser cronista no periódico O Combate, de meu saudoso amigo Toninho Lorena, onde permaneci escrevendo até seu encerramento, e que me deu visibilidade e rendeu convites para publicar em jornais e revistas da região do Vale do Paraíba.
Hoje, minha cidade comemora 360 anos. Assim, quase quatro décadas passadas, eu o publico novamente, pois faz parte de minha historia dentro da cidade que me acolheu e que me permitiu crescer e ser feliz.
As fotos que ilustram esse texto foram adquiridas durante minha gestão frente à presidência da Fundação Cultural de Jacareí, da coleção de Mir Cambusano e hoje fazem parte do acervo de documentos visuais do Arquivo Público Municipal.

Pra você, Jacarei, esta “A cidade e o rio”

Cidade, cidade, ci

É preciso que eu descubra uma forma de transpor para o papel o que me vai na alma.
Um processo novo que transforme a letra em vida, para que a crônica surja como a própria realidade.
E eu tento. Capturo o instante e o aprisiono e, suavemente, vou me introduzindo na essência das palavras, então, transcendendo os limites que o papel impõe, rompendo todas as barreiras surgem A cidade e o rio, misto de cônica, ensaio e poema, pois, que cântico maior pode existir do que o inspirado pela vida, em seu dia-a-dia?
Matéria prima composta pela junção da lógica e da emoção, meu tema é:
A cidade:

Ela estende-se na paisagem e desabrocha no silêncio.
Ouço-a dentro de mim e ao derredor – meu corpo inteiro imerso em seu, e em nós, o ritmo da essência pulsa com o sabor peculiar desse sentir abstrato.
Seu rosto tem mil faces e de suas entranhas surgem multidões de homens e mulheres (carregando?) carregados pelo forte instinto de sobreviver.
E eu vejo as placas nas esquinas com nomes dos que passaram, e vejo os largos, clubes, albergues, hospitais; a nova praça dos velhos poderes; as duas pontes sobre o eterno rio.

E observo o solar antigo de janelões enormes com largos corredores impregnados pelo aroma do tempo que passou. E entro nos espaços que pressinto para mim abertos, buscando neles a seqüência de ruídos para compor a melodia do amanhecer: passos, latidos, risos, buzinadas; rumor das fábricas, dos carros, do rápido das dez, que em trilhos corre e corta a cidade ao meio. E falas, gritos e frases soltas mesclam-se ao som inconfundível dos sinos da matriz. É a melodia eternamente inacabada, inabalável. A harmonia da desarmonia. A vida que se vive e se vê. E nela nascimentos e mortes se sucedem e vidas brotam qual flores em jardins, nem sempre bem cuidados: meus jardins/os seus.

Pergunto então: Até que ponto seus domínios me pertencem, se eu sou seu grito e ela meu silêncio e de gritos e silêncios somos ambas preenchidas? Se sua noite me acalenta e em seu novo dia eu me transformo? Se sou ator e ela o meu teatro?
Coexistimos. Vamos ambas crescendo e amadurecendo às margens de um rio.

O Rio

Do rio eu sigo o fluxo navegando águas nem sempre calmas por caminhos tortuosos. Enfrentando os ventos, as chuvas, as inundações.. Inserida em seu tempo e cenário. Nele ninguém me prende. Sou livre e me entrego e ele me recebe, sempre, como ao filho pródigo acolhe o pai.
Meu rio. Meu reinício. Meu rioinício.
E não é ele a grande veia que sustenta a vida?
Sua pujança espanta e quase dói. Dói como a busca de palavras certas para exprimir idéias pressentidas. Dói como o mistério da vida que em vão tento decifrar.
Minhas perguntas todas em suas águas estão lançadas. Difícil é decifrar suas respostas, embora eu sinta que nele se encontra a única verdade para mim.
O rio é meu segredo, que docemente eu guardo.

Eu, a cidade e o rio

Encerro a idéia, a crônica, o ensaio.
Termina a magia do momento aprisionado.
Fora encontra-se a realidade da vida, dos sinos, dos gestos, dos vários idiomas, do amor e desamor. E estão as angustias tão humanas, o nervosismo e a calma, e os monólogos e diálogos e todas as funções.

E permanecem rostos, praças, ruas, avenidas, buzinas, semáforos, postes e faróis. E estão as árvores que florescem e fenecem com pássaros e flores e cães e gatos vivendo nos quintais; e bancos de jardins e bancos de dinheiro, e morros e bicicletas sempre na contra mão. E permanecem os buracos, calçadas, bares, clubes, lojas e o Cinemão. E tem a JAM formando seus guardinhas e a banda e os coretos e os rojões. E o Combate, e o Diário e a nossa Radio Clube. A Prefeitura, o Fórum e as antenas/torres de Tv. E vivem engenheiros, advogados, médicos, poetas. Leões, Rotarianos e maçons. E também vivem meretrizes e pedintes, ladrões e operários. E estão a lua, o rio, as chuvas de janeiro, e o tráfego confuso, a poluição…


E permaneço eu também – meu nome se anuncia: Lu, simplesmente, como gostam de chamar.
Procuro, insistente, deixar um marco, o meu registro. Algo como se fosse: “Hei! Também estive aqui! Aqui vivi, compus, sonhei, cantei e vivo ainda.
Eu pássaro. Eu peixe. Eu flor e eu, também, às vezes gente. Eu, gente às vezes…
O resto não importa. Não passa de ilusão.
É noite. No silêncio do quarto ecoa seco, o ruído das teclas no papel, das frases rápidas que nascem e tingem com significados a folha em branco.
A madrugada se aproxima e eu me preparo. De novo sigo em busca do momento que torno a pressentir…e amanhece! E é isto, apenas, o que me vem da vida, do rio e da cidade: (da qual eu sinto, num vislumbre, todo o peso dos 323 anos que também vivi.) A vida que flui de mim a cada aurora.
De mim, Ludmila, nesta Jacareí.
(Ludmila Saharovsky em 1975)

    

    Contos mínimos: A terceira margem do rio


    Aspirando o cotidiano pó do carpete, imaginou que a mancha de umidade proviesse de algum cano furado. Chamaria o encanador, tão logo terminasse a faxina. Em poucos minutos porém, um estreito riacho já percorria a sala. Extasiou-se observando a água crescer em volume. Logo, caudaloso rio dividia a casa em duas margens. As garças não tardaram em surgir, tampouco os peixes. Ao entardecer, preparativos findos, trancou portas e janelas. Armada com os apetrechos de acampar, inflou a canoa e partiu para a outra beira. Mergulhada no deleite da travessia, lembrou-se de que nada dissera à família. Pensou em retornar, mas, seu muro e o jardim já nem se vislumbravam no horizonte.
    (Ludmila Saharovsky)

      

      Contos mínimos: Garrafas ao mar!

      De sua solitária ilha, todas as tardes, a mulher enviava mensagens em garrafas atiradas às ondas, na esperança de que fossem encontradas e respondidas.
      A maré, no entanto, insistia em devolvê-las intactas.
      Então resolveu: ela mesma escreveria as respostas e as entregaria ao mar.
      Sentada na praia, o olhar perscrutando o oceano, ela aguarda, ansiosamente,
      pela próxima correspondência trazida pelas águas.
      (Ludmila Saharovsky)

        

        Contos mínimos: A fada


        Todas as noites ela vestia suas roupas de fada e deslizava, leve, pelos bosques de concreto e vidro, até encontrar o quarto onde seu amado dormia. Recitava, então, baixinho, as estrofes do encantamento. Transformada em brisa, apossava-se suavemente dos recôncavos daquele corpo, adormecendo feliz. Então sonhava. Sonhava que despia suas roupas de fada…
        (Ludmila Saharovsky)

          

          Mundo Etéreo

          Nosso grupo de teatro Cia.Teatro do Interior, seguiu hoje para participar da mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba, Paraná, levando o espetáculo Mundo Etéreo, que ainda não marcou temporada aqui no Vale.
          Cristiane Azevedo, dirigida por Marilda Carvalho, atravessa o Mundo Etéreo, de sombra e luz, enfrentando os medos, dores, angustias, incertezas com as quais nos confrontamos quando colocados frente a frente com a nossa própria consciência e suas incontáveis crenças.
          Imagens da bailarina, assinadas pelo talentoso fotografo Adilson Machado, com textos meus, pontuando os diversos momentos do enredo, fazem parte da mostra que acompanha o espetáculo.
          (Ludmila Saharovsky)

            

            Contos mínimos: Menina dos olhos

            Do outro lado do espelho, a menina que me olha, imagina que sou o seu reflexo?

            Temerosa, a menina de meus olhos não aceitou viajar no imenso mar azul, para o qual a sua a carregava.
            Hoje, em vão, vasculha o oceano, mas a latitude perdeu-se para sempre naquele seu olhar!

            Com as lágrimas derramadas fez um delicado colar e o levou de presente para a menina que morava em seus olhos, mas ela, escolada, o recusou.

            Quando a menina de seus olhos viu-se refletida nos olhos dele, encantou-se de tal maneira, que, para conservá-la, ela precisou mudar-se, com urgência, para a sua casa.

            (Ludmila Saharovsky)

               

              Contos mínimos: Detalhes


              Ela o criara perfeito. Não esquecera de nenhum detalhe: a armadura reforçada, os peitorais de aço, o elmo luzidio, a lança forjada pelo melhor ferreiro, o escudo onde rebrilhava a insígnia de sua casa. Presenteara-o com o garanhão negro de rara linhagem. Esquecera-se apenas de uma questão que lhe passara, deveras, desapercebida: A de instruí-lo de que seria ela a dama escolhida à qual dedicaria todas as vitórias, e não a pálida donzela pela qual o cavaleiro, perdidamente, se apaixonou.
              (Ludmila Saharovsky)

                

                Contos mínimos: Milagre

                (foto Studio Pavel Mirchuk)

                Sozinha, nas tardes de melancolia, ela se deixava levar pelas recordações, enredando-se nos longos corredores do passado, onde, inutilmente, buscava seu perdido amor. Resolveu então povoar cada aposento vazio, com as histórias que habitavam suas fantasias. Dia após dia, a casa solitária foi adquirindo vida, cheiros, cores, alegria. As roseiras não tardaram a florir. Os pássaros não demoraram em chegar. Os vizinhos aproximaram-se cheios de expectativas. Afinal, quem fora o autor daquela proeza? Abrindo a porta que dava para o jardim, a mulher libertou a imagem daquele homem aprisionado em suas retinas, e apresentou a todos o autor daquele milagre.
                (Ludmila Saharovsky)