Contos Mínimos: Sereia


Colecionava conchas. Em vidros, caixas, potes ou expostas em prateleiras elas eram dos mais variados feitios, de diversas procedências. A predileta ficava sobre seu criado-mudo. À noite, família recolhida, acostumou-se a dormir ouvindo o barulho das ondas ecoando pelo orifício perolino. A transformação começou lenta. Tênues surgiram as primeiras escamas. Uma fina pele envolveu-lhe os membros inferiores. Os pés alargaram-se numa profusão de cartilagens. Hoje, cercada por corais e cavalos marinhos, ela canta na banheira, enquanto o dia amanhece.
(Ludmila Saharovsky)

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    Sudário


    Amado, regressei do Peloponeso: Corpo em frangalhos, mente abstraída, alma anelando pela placenta do mar, aquela, onde hibernam todos os navios naufragados, com seus cardumes de estrelas e de medusas.
    Hoje eu quero um útero materno onde me alojar e óleos aromáticos para untar-me a pele ressecada. E quero uma veste alvejada e macia, rescendendo a incenso e mirra…eu quero!
    E desejo também um anjo que me traga a noite nos braços e uma lua antiquíssima para inspirar meus sonhos e iluminar meu leito com sua aura prateada.
    E necessito que tu me encontres logo, dentro do encantamento do sono, quando abro todas as portas para permitir que adentres e te enredes em meu corpo, mais uma vez.
    Assim, entre cortinas brancas de nuvens e esse perfume de cedros que emana de tua pele, que pressinto, eu me tranquilizo. E relaxo. E me absolvo de todos os pecados, e dizendo amém, beijo a lembrança de tua boca na minha e, enfim, adormeço.

    Ludmila Saharovsky
    do livro Cronistas e contistas contemporâneos, da Editora Scortecci)

      

      Elas por Eles – Palavra de mulher

      São José sediou a 2ª edição do Sarau Literário Elas por Eles – Palavra de Mulher

      No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o Instituto Ecocultura em parceria com a Rede Cidadania e o apoio do SENAC, realizou a 2ª edição do Sarau Literário Elas por Eles – Palavra de Mulher, em homenagem a escritoras de várias cidades valeparaibanas. O objetivo é valorizar o patrimônio humano do Vale do Paraíba e evidenciar a contribuição dessas figuras femininas à cultura local e regional.

      Texto de Sonia Gabriel
      Este Sarau tão especial nasceu da vontade de celebrar. Celebrar é uma das mais antigas manifestações humanas. Celebraremos a vida em tom feminino.
      Celebraremos mulheres que vivem.
      Mulheres que vivem para amar, escrever, trabalhar, cuidar…
      Mulheres que vivem em nós que as lemos e ouvimos.
      Quando o Instituto Ecocultura pensou este Sarau, pensou nestes meninos e meninas que não desanimam e que tem como característica, a celebração.
      Quando iniciamos os encontros para desenhar este momento, celebramos também. Cada hora de conversa, de ideias, de sentimentos sinceros e honrosos por elas que nos presenteiam um legado.
      Conversamos muito, ligamos para tantas pessoas que amam as letras, que amam as histórias, que amam os seres humanos; são tantas mulheres maravilhosas, competentes, lutadoras…
      Chegamos ao acordo de que nossas homenageadas são referências para todos nós, e, parea tantos outros artistas do Vale do Paraíba.
      Ficamos felizes em dizer que não foi tarefa fácil, e, mais felizes ainda em constatar a generosidade de escritoras e escritores de nosso Vale que reconhecem nossos expoentes, que confraternizam sermos contemporâneos e que querem celebrar conosco.
      Tentamos abranger a Poesia, o Romance, os Contos, as Crônicas, a Pesquisa, a Oralidade.
      Imaginamos romper alguns insistentes tabus. Os homens ganharão o Palco.
      Eles foram generosos e cavalheiros, empolgaram-se, dedicaram-se, vibraram por elas.
      Está sendo muito especial participar de cada momento desta noite que nos inundará de palavras.

      Paulo, Wallace, Sílvio, Braga, Roberval, assim com essa initmidade totalmente feminina, aguardamos ansiosas. Suas homenageadas valem cada minuto de inspiração.

      Zenilda, flor de generosidade, horas de trabalho de pesquisa, biografias tão poéticas, família tão amada, você é a ponte leve, giratória, segura. Única neste palco masculino dedicado totalmente para ELAS.

      Que as musas celebrem conosco!

      Paz e bem!
      Sônia Gabriel

      Texto de apresentação escrito por Zenilda Lua

      Ludmila Saharovsky
      Ela é o próprio código da poesia.
      Foi publicada em diversas antologias, jornais, revistas, postais-poemas e folhetins, no Brasil e no exterior.
      Seus textos transformaram-se em oficinas de linguagem poética, peças de teatro, balé, teses universitárias, CDs, dentre outros.
      Sua obra encontra-se hoje, espalhada em inúmeros sites e páginas na internet.
      Continua escrevendo crônicas em jornais e revistas.
      Poetisa, cronista e escritora reconhecida, capaz de captar os sentidos mais profundos. Morou na Rússia, nos Estados Unidos e na Inglaterra, hoje nos alegra com sua presença e, em breve retorna para lançar seu novo livro, Tempo Submerso.
      Nesta obra, Ludmila despetala as flores lembrativas de paisagens íntimas e, aconteceres próprios de quem nasceu pra tranquilizar e conciliar a diferença das alegrias no senso de raridade que a ternura recomenda.
      Zenilda Lua

        

        Memória marí(n)tima

        Entre o anoitecer e o silêncio, percorro mares da memória, em paisagens de antes, que já não me pertencem.
        A solidão abraça-me e me acompanha. Ela me é necessária pois me transporta a um tempo que eu gostaria de eternizar. Ela preenche meu sangue, dilata-se, bate com seu ritmo compassado em minhas veias, e reanima outros pulsares, inconfessáveis, de íntimas inundações. Assim, sem qualquer resistência, me entrego. Recordar é outra forma de habitar o tempo!
        Súbito, teu rosto amado desliza pelas ondas e me alcança. Essa presença inesperada é como brisa tênue que me envolve. Farol de luz num oceano de tormentas. Perturba-me ainda o ardor, teu corpo curvado sobre o meu ao peso da ternura. Escuto tua voz latejando no centro do que fui, num lugar de praias e gaivotas. Ali eu te guiava, a alma estremecida por tremores, a pele devastada por arrepios, enlouquecida pela intensa vigília a que me obrigavas: ora vinhas do norte, ora do sul, as caravelas trazidas pelo vento. Buscavas em mim os infinitos, a transparência luminosa das manhãs, vôos selvagens, novas correntezas. E eu me abria, sem reservas, ao toque leve de tuas mãos. E, a partir dessas vivências, fomos desenhando a rota para um percurso que guardamos em segredo. Só esqueceste de dizer-me que eu seguiria só.
        Agora, perco-me nesse espaço de memória e vigília, tão dolorida de saudade, no qual a neblina tem o poder de encobrir historias, transformando-as em lembranças.
        Navego sem destino por esse mar de dentro, sem porto nem enseada, perseguindo o que não vivi. Falta-me teu sopro de alegria, teu cheiro, teu gemido. Estremeço, não mais pressentindo a certeza, mas a fragilidade. Aves marinhas ciscam minha alma em busca de um alimento que não possuo. Só seixos, conchas vazias e troncos retorcidos compõem essa paisagem corroída pela maresia. Desde que te exilaste de mim, sou toda calcário e sal. Estátua muda pendendo da proa de um navio fantasma. Olhos vazados intuindo o nascer lento do sol, deixo-me levar pela corrente. E rememoro. Rememoro para alcançar o inalcançável. Relembro, tentando trocar o amor pela memória dele mesmo.
        Relembro, que é meu jeito obsessivo de te reencontrar, navegando nas águas de tua ausência. Finalmente o dia surge, e a dor da tua partida joga-me violentamente de retorno à vida. Por pouco tempo. Sol posto, volto a navegar!
        Ludmila Saharovsky
        (texto publicado no jornal O Valeparaibano)

          

          Retratos de Mulher

          Retratos de Mulher
          *Ruth Guimarães

          A lenda hindu, plena de poesia, conta como foi criada a mulher: com as curvas dos rios, a agitação da onda, o perfume da flor, o colorido da rosa, a suavidade das rolas, o mistério do luar, o arfar do brando zéfiro, a música dos gorgeios, e por aí vai.
          O deus criador usou também na escultura gentil a maldade astuta da serpente, a malícia da raposa, o efeito letal dos venenos; e assim danou para sempre a sua obra. Acrescentou-lhe o sal do pecado da sensualidade, da mentira e da preguiça. Mulher.

          Agora, a lenda judaica:
          Jeová, primeiro refletiu sobre de qual parte do corpo do homem poderia se servir, para esculpir a mulher. Teria que ser material nobre, osso, cartilagem, carne, vida, em que usaria o cinzel. Andavam longe do tempo em que para suscitar vida humana, lançara mão da mísera argila, lama da terra, de que foi feito o primeiro homem.
          E disse Jeová, consigo mesmo, uma vez que ainda não estavam bem ultimados os interlocutores:
          – Não quero formá-la da cabeça, para que ela não levante a sua em demasia e não se coloque acima do companheiro, com arrogância de pensamentos vãos. Não quero conformá-la do olho, não vá a fragil criatura espiar, espionar, espreitar por toda parte, arreliando os outros seres recém-criados. Nem quero retirá-la dos ouvidos, para que não dê atenção a murmúrios malévolos, insinuações sutis, sussurradas na concha cor-de-rosa das orelhas. Que sua tendência não seja para aquiescer à sedução do seu arqui-inimigo, o Zombeteiro. Nem tirarei da boca, nem da língua, para que não fale demais e não repita quanto escute, armando enredos. Nem do coração, para que não se torne ora sentimental, ora irritável. Nem da mão, para que não arrepanhe todas as coisas boas, com garras ávidas. Nem do pé. Não deambulará por aí, em vez de cuidar dos deveres.
          E decidiu Jeová.
          -Mas eu a farei da costela, parte tão casta, que, mesmo que o homem esteja nu, a costela está coberta.
          Qual terá sido o retrato final da mulher, retirada de parte tão casta?

          * Ruth Guimarâes (Cachoeira Paulista, 13 de junho de 1920) é a escritora mais querida de nosso Vale do Paraíba.
          Membro da Academia Paulista de Letras, é poetisa, cronista, romancista, contista e tradutora brasileira
          Dentre suas obras destacam-se:
          Água Funda. Porto Alegre, Edição da Livraria do Globo, 1946
          Os Filhos do Medo. Porto Alegre, Editora Globo, 1950
          Lendas e Fábulas do Brasil. São Paulo, Editora Cultrix, 1972
          Dicionário de Mitologia Grega. São Paulo, Editora Cultrix, 1972
          Crônicas Valeparaibanas. São Paulo, Centro Educacional Objetivo/Fundação Nacional do Tropeirismo,1992
          Contos de Cidadezinha. Lorena,Centro Cultural “Teresa D’Ávila”, 1996
          Calidoscópio – A Saga de Pedro Malazarte. São José dos Campos, JAC Editora, 2006.
          Histórias de Onça. São Bernardo do Campo, Usina de Idéias Editora, 2008. Volume I do Projeto Macunaíma.
          Histórias de Jabuti. São Bernardo do Campos: Usina de Idéias Editora, 2008. Volume II do Projeto Macunaíma.

            

            Le voyageur sans bagage

            “Le voyageur sans bagage” é o título de algum livro ou peça, nem sei mais de que autor, e que, a cada viagem que faço, recito feito mantra! Ah! Como eu gostaria de ser esse viajante sem bagagem! A idéia do despojamento me atrai, mas, até torná-la um hábito, é longo o caminho. Sempre que planejo uma saída, mudança, um novo início para qualquer atividade, deparo-me com a presença de tantas coisas das quais não mais preciso e, no entanto, não consigo me desfazer! Quanto volume vou acumulando em meu entorno: recortes de jornais, cartas, bilhetes, velhas agendas. Para que as guardo afinal? Devo ter uma dezena de chaves que não combinam com nenhuma porta, caixinha, cofre, mala, baú, mas estão lá, aguardando serventia. Parafusos soltos, arruelas, moedas sem valor, botões, selos, eles formam em casa um sebo tão colorido quanto inútil. Jamais algum botão avulso consegue combinar com o perdido: ou falta-lhe mais um furo, ou o tom é ligeiramente diverso, o tamanho “quase” passa pelo caseado. Assim eles vão para vidros e aguardam por algum milagre que os reaproveite. Também! Não ocupam espaço algum, eu rumino com os meus, bem abotoados! Outro dia resolvi por em ordem as cartas que recebo de amigos. Desfazer-me, quem sabe, de cartões de natal, de aniversário, dos bilhetes escritos pelas crianças,(elas cresceram!) e viajei a tarde inteira! Puxa! A Márcia Argenton, em 68 escreveu-me da Índia, e hoje, por onde andará? Perdeu-se de mim, mas o postal é a prova concreta de nossa amizade de adolescência. Como destruí-lo? Luiza Irene Galvão, e seus cartões tão carinhosos, com palavras amigas que me tocam fundo a alma! Os poemas inéditos de Dyrce Araújo, manuscritos, tesouros de rara beleza! E os bilhetes de Mestre Justino, rabiscados em meio a esboços de futuros desenhos? Como me desfazer deles, se meu querido amigo já se foi, como Guima Pan, que me brindava com cartas de oito, dez páginas praguejando contra os devastadores da natureza? E os envelopes das cartas de Dailor Varela? Só eles valem por toda a poesia concreta que ele já produziu. Chegam cheios de colagens, endereçadas à Ludmila Maiakovsky, coloridos, rabiscados, os selos colados de ponta cabeça. São relíquias para mim. Resultado: Tirei tudo das gavetas, ventilei e reorganizei num fichário que não consigo mais fechar. Fechário! grito, mas ele não me obedece! Mas, voltando ao despojamento, retorno à infância. Meu quarto dividido com o de minha avó, virginiana, ordeira ao extremo, despojada e minimalista em suas posses (depois que duas guerras a deixaram apenas com a roupa do corpo) ela vivia numa simplicidade de monja. Não guardava nada, não se apegava a coisa alguma material: nem roupas, enfeites, plantas ou animais. Apenas seus velhos e amantíssimos ícones, elo de ligação espiritual com a pátria e as fotos dos amigos perdidos tinham importância. Aos poucos eu fui preenchendo todos os espaços com meus badulaques até o dia que ela me disse: Ou você se organiza ou muda do quarto. Mudei! Hoje olho ao meu redor e penso: o que não me fará falta? Oras, tudo é possível de substituir, descartar, doar, trocar, mas eu gosto de casa cheia de lembranças. É meu jeito de interagir com o mundo que me cerca. Só se, Deus me livre, acontecer algum acidente de percurso e tudo sumir, como num passe de mágica! Só assim recomeçarei a caminhada lá adiante, livre e leve, com a roupa do corpo, numa casa pequenina em que meus passos não me levem às flores, à coleção de elefantes, aos Cds, quadros, porta retratos, gavetas, caixinhas, bilhetes, agendas, livros, velhos cadernos de receitas, perfumes, batons, botões, e tantos “trens” que no final, fazem toda a diferença! Sei que é preciso abrir espaços para que o novo entre, mas, sempre tem uma frestinha por onde ele pode se insinuar e depois, há muitas outras maneiras de se treinar o desapego, não é mesmo? (Ludmila Saharovsky)
            (crônica publicada no jornal O Valeparaibano)

               

              Contos Mínimos: Trapezista

              Quando a família adormecia, ela colocava seu maiô de paetês e precipitava-se no ar, transformada em trapezista. Exercitava vôos exóticos, sobre o balanço das crianças, instalado entre os galhos da secular mangueira. A cada treino alcançava maiores distâncias, até que, numa noite, a corda desprendeu-se e a lançou, de uma vez por todas, no mundo da fantasia.
              (Ludmila)

                

                Contos Mínimos: Notas musicais

                O cego tocava gaita na rua.
                Na avenida agitada, alheia ao movimento, a mulher parou e mergulhou nos acordes daquela melodia. Ao terminar, o homem bateu com o instrumento na palma da mão, e entregou-lhe, agradecido, um punhado azul de notas musicais.
                (Ludmila)

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