“Le voyageur sans bagage” é o título de algum livro ou peça, nem sei mais de que autor, e que, a cada viagem que faço, recito feito mantra! Ah! Como eu gostaria de ser esse viajante sem bagagem! A idéia do despojamento me atrai, mas, até torná-la um hábito, é longo o caminho. Sempre que planejo uma saída, mudança, um novo início para qualquer atividade, deparo-me com a presença de tantas coisas das quais não mais preciso e, no entanto, não consigo me desfazer! Quanto volume vou acumulando em meu entorno: recortes de jornais, cartas, bilhetes, velhas agendas. Para que as guardo afinal? Devo ter uma dezena de chaves que não combinam com nenhuma porta, caixinha, cofre, mala, baú, mas estão lá, aguardando serventia. Parafusos soltos, arruelas, moedas sem valor, botões, selos, eles formam em casa um sebo tão colorido quanto inútil. Jamais algum botão avulso consegue combinar com o perdido: ou falta-lhe mais um furo, ou o tom é ligeiramente diverso, o tamanho “quase” passa pelo caseado. Assim eles vão para vidros e aguardam por algum milagre que os reaproveite. Também! Não ocupam espaço algum, eu rumino com os meus, bem abotoados! Outro dia resolvi por em ordem as cartas que recebo de amigos. Desfazer-me, quem sabe, de cartões de natal, de aniversário, dos bilhetes escritos pelas crianças,(elas cresceram!) e viajei a tarde inteira! Puxa! A Márcia Argenton, em 68 escreveu-me da Índia, e hoje, por onde andará? Perdeu-se de mim, mas o postal é a prova concreta de nossa amizade de adolescência. Como destruí-lo? Luiza Irene Galvão, e seus cartões tão carinhosos, com palavras amigas que me tocam fundo a alma! Os poemas inéditos de Dyrce Araújo, manuscritos, tesouros de rara beleza! E os bilhetes de Mestre Justino, rabiscados em meio a esboços de futuros desenhos? Como me desfazer deles, se meu querido amigo já se foi, como Guima Pan, que me brindava com cartas de oito, dez páginas praguejando contra os devastadores da natureza? E os envelopes das cartas de Dailor Varela? Só eles valem por toda a poesia concreta que ele já produziu. Chegam cheios de colagens, endereçadas à Ludmila Maiakovsky, coloridos, rabiscados, os selos colados de ponta cabeça. São relíquias para mim. Resultado: Tirei tudo das gavetas, ventilei e reorganizei num fichário que não consigo mais fechar. Fechário! grito, mas ele não me obedece! Mas, voltando ao despojamento, retorno à infância. Meu quarto dividido com o de minha avó, virginiana, ordeira ao extremo, despojada e minimalista em suas posses (depois que duas guerras a deixaram apenas com a roupa do corpo) ela vivia numa simplicidade de monja. Não guardava nada, não se apegava a coisa alguma material: nem roupas, enfeites, plantas ou animais. Apenas seus velhos e amantíssimos ícones, elo de ligação espiritual com a pátria e as fotos dos amigos perdidos tinham importância. Aos poucos eu fui preenchendo todos os espaços com meus badulaques até o dia que ela me disse: Ou você se organiza ou muda do quarto. Mudei! Hoje olho ao meu redor e penso: o que não me fará falta? Oras, tudo é possível de substituir, descartar, doar, trocar, mas eu gosto de casa cheia de lembranças. É meu jeito de interagir com o mundo que me cerca. Só se, Deus me livre, acontecer algum acidente de percurso e tudo sumir, como num passe de mágica! Só assim recomeçarei a caminhada lá adiante, livre e leve, com a roupa do corpo, numa casa pequenina em que meus passos não me levem às flores, à coleção de elefantes, aos Cds, quadros, porta retratos, gavetas, caixinhas, bilhetes, agendas, livros, velhos cadernos de receitas, perfumes, batons, botões, e tantos “trens” que no final, fazem toda a diferença! Sei que é preciso abrir espaços para que o novo entre, mas, sempre tem uma frestinha por onde ele pode se insinuar e depois, há muitas outras maneiras de se treinar o desapego, não é mesmo? (Ludmila Saharovsky)
(crônica publicada no jornal O Valeparaibano)