Confidências


Hoje, choquei-me contra a realidade do céu azul
e a palavra que queria dizer-te, espatifou-se em minha boca.
Virou suspiro, virou soluço, virou saliva, virou susto!
De repente, o eixo de marfim que me mantinha centrada neste mundo, equilibrada, equidistante, tornou-se uma espiral de sonhos a atravessar-me, a dividir-me ao meio:
Metade mulher, metade filigrana ornando um camafeu onde observo a estampa de meu próprio rosto.
Sou fêmea na aurora, preenchida por seixos e presságios. Deusas e demônios.
Percebes a metamorfose?
Será que mesmo assim, poderás identificar-me?
Reconhecer-me pelo meu cheiro e gosto?
Perceber esse alarido de pássaros que me atravessa a alma
e se desprende de mim, feito choro de violoncelo e cuíca em contraponto?
Ah…meu coração está repleto de candeias acesas, tochas, archotes, velas,
aguardando um rito nobre que o ressuscite, que o redima…
Estou assim, meio indefesa no universo.
A vida escorre em mim, feito areia na ampulheta: mais um grão…mais um… mais outro,
enquanto vou me consumindo nessa miragem,
abismada em profundezas infinitas…
E esse ruído de tambores distantes enviando mensagens cifradas!
Para que? Para quem? Para mim? Para ti que em mim te escondes?
Mas afinal, de quem é esse destino que se tece assim, à revelia, entre as cordilheiras?
(Ludmila)
texto publicado na Antologia Delicatta, 2011, Editora Scortecci

      

    Deslimites


    Um cavalo pasta inscrito na paisagem, indiferente ao mar e aos seus reflexos de luz. Indiferente ao lento deslizar das gaivotas. Sem perceber o colorido dos barcos que navegam por seus olhos. Sem dar-se conta que aqui não existe horizonte. Há muito que céu e mar fundiram-se na neblina…
    Há quanto tempo esses barcos, esse mar, esse silencio, esses deslimites?
    Pergunto-me e já começo a sentir o desespero agudo da partida. Logo, tudo serão lembranças. Tantos perfis sobrepoem-se-me na memória. Eles como que recobraram seus contornos nessa ilha. E eu tento preservá-los assim, como eram antes do exílio. Antes do tempo de guerra e de fugas. É dolorosa, em mim, essa presença de corpos que criaram asas. Em mim, que continuo presa ao chão. Sei que, por mais que caminhe, jamais chegarei ao recomeço.
    Olho então essa paisagem e escrevo. Pudesse eu transformar cada palavra em pedra e deixá-la aqui, pela eternidade, ajudando a compor esse cenário. As dores calcinadas….Todos os dias elas seriam cobertas pelas marés, e o musgo nasceria sobre… e algas.
    Olho pela janela de meu quarto. O buquê branco e cheiroso do arbusto no jardim confunde-se com a fina estampa das cortinas. Esse lugar é diferente de todos que já vi. Aqui a alegria é menos urgente, e o tempo corre lento em sua gestação de novos dias. E há contrastes instigantes preenchendo as distancias. E há o vento. Ah… o vento e o repicar dos sinos.
    As horas escoaram por mim, e eu, entorpecida, refugiei-me num espaço interno, num tempo suspenso, onde tudo aconteceu como que por dentro. Por dentro da ampulheta que eu desvirava, a areia presa ali, escorrendo de lado a lado, marcando a vida que se plasmava fora. Fora meus passos no labirinto, fora as palavras, as florestas, as paisagens, as pessoas. E eu também, fora de mim, tentando povoar as manhãs com o meu deslumbramento. E agora, nessa véspera de partir, sorvo as distancias, vestida já de luto. Percorre-me um frio estranho. Um frio na alma.
    Um cavalo pasta na paisagem, indiferente a tudo!
    Ludmila Saharovsky
    Diário de viagem/ Anotações/ Véspera de partida

      

      Tanto riso…tanta alegria!

      Atrás de incontáveis máscaras havia um rosto, ou , poderia dizer-se também, sem medo de errar que, atrás de incontáveis rostos existia uma máscara.
      Dilema! Tanto tempo fundidos – as máscaras e os rostos – que era difícil distinguir qual era qual.Indecifráveis, todos lhe pediam exclusividade. Mas, e para além?
      Para além, o desconhecido. As trevas encorajavam-na a desvendar definitivamente este mistério de sua existência, enquanto a brisa leve dançava nas cortinas: odalisca envolta em transparentes vestes, chamando-a para a vivência seguinte, como nos contos das Mil e uma Noites.
      Ela olhou-se atentamente no espelho, buscando pistas: a pele claríssima, de porcelana. O riso desenhando tristemente a boca. E uma lágrima, do olho esquerdo, escorrendo pela face, lenta. Não conseguiu secá-la. Estava impressa. Na máscara? No rosto? Em sua alma? No cristal?
      Apalpou-se com a ponta dos dedos e estremeceu. Sua face não sentiu o leve toque. Aproximou-se mais. Ficou tão junto que percebeu o hálito recobrir o vidro com textura adamascada. Olhou-se fundo, nos olhos e só então percebeu o rosto. Mas ele também não se movia. Estava absolutamente impassível, impenetrável.
      Lá fora, a vida, as luzes, os ruídos… os blocos, as escolas, as pessoas. Tudo em movimento. Ela buscou , aflita, sua voz na distância. Procurou ouvi-la dentro da noite, perdida entre tantas outras, na esperança de saber-se viva ao menos pelo som. Não obteve um simples eco em resposta. Quanto esforço para revelar-se! Que espaços necessitava de transpor? Qual tipo de persona procurava? Com qual identidade sairia, inaugurando finalmente, em si, a festa? Não conseguira, em tantos anos, assimilar a linguagem híbrida das ruas, partilhar da alegria geral, soltando-se, suando e sambando. Era estrangeira naquele meio. Emigrada de longínquas planícies tentava aprender em vão os costumes desta terra alheia. Buscava por milagres que não aconteciam, por paisagens frias que derretiam abaixo do Equador, por lembranças que não a resgatavam. Foi quando recorreu à primeira máscara: aquela personagem até que lhe caíra bem! Usou-a por algum tempo, criando à sua volta um novo mundo. Mas, imersa numa realidade que também não lhe pertencia, logo sentiu-se pouco à vontade e experimentou a seguinte. Da qual também se cansou. E assim foi vivendo, de salto em salto, de fantasia em fantasia, de porto em porto, na vertigem de ser sempre outra. E, na magia de reinventar-se, acabou perdendo sua verdadeira face. Ah! E como era difícil reencontrá-la! Quem era ela afinal? Desdobrara-se aos poucos entre tantas cidades, fugira de olhares que a perscrutavam, da constante curiosidade dos passantes, refugiando-se em identidades, outras. Transportara-se em viagens intermináveis em busca de suas raízes, para além do tempo, num mar de estrelas e constelações. Mas hoje, particularmente agora, sentia-se tão cansada! Olhou novamente para o rosto, aquele, por trás das máscaras e resolveu que chegara a hora de assumi-lo. Estendeu as mãos, tocou-o com infinito carinho, até que finalmente, ele se moveu. Olhou para ela, de dentro do espelho e, retirando toda a pele humana, lhe sorriu.
      (Ludmila Saharovsky)

        

        Esses livros dentro da gente

        Ler é mágico!
        Eu não saberia o que é viver se a leitura não me alimentasse:
        Certamente seria uma pessoa muito mais pobre de espírito e mente.
        Livros são mais importantes para mim do que viagens, roupas, sapatos, enfeites…Eles só empatam com encontros com amigos que me fazem bem à alma. Esses, igualmente, me alimentam!
        Pergunto-me, que mulher eu seria, se minha criança interna não tivesse viajado pelo mundo de Alice? Pelos poemas infantis de Pushkin? Pelo maravilhoso universo de Monteiro Lobato? ( Foi o primeiro autor que li em português: As Reinações de Narizinho, emprestado por uma coleguinha que sentava-se comigo na mesma carteira de meu grupo escolar…)
        Que seria de mim sem Júlio Verne?
        Sem Charles Perrault, Irmãos Grimm, Andersen?
        Como seria nossa infância, sem esses livros dentro da gente?
        E…da mesma forma…como seria nossa maturidade sem a literatura?
        Como escreveu Rubem Alves, em seu “Perguntaram-me se acredito em Deus” (Editora Planeta)
        “Escrever e ler são rituais mágicos. Num primeiro momento, aquele que escreve transforma a sua carne e o seu sangue em palavras. No momento seguinte, aquele que lê transforma as palavras lidas na sua própria carne e no seu próprio sangue…O sangue do escritor então irá circular no corpo daquele que o leu”…É a mais perfeita comunhão!
        Mas, toda essa divagação foi para comentar com vocês, o mundo mágico no qual estou mergulhada: O de George R.R. Martin e sua Crônicas de Gelo e Fogo.
        Quando li os seis livros de Duna, de Frank Herbert, pensei que nunca mais me apaixonaria tanto por obra de ficção, quanto aquela.
        Então vieram: O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien
        depois os sete livros de Crônicas de Nárnia de C.S.Lewis
        em seguida a triologia de Bússola de Ouro, do escritor Philip Pullman.
        e…porque não, a deliciosa série de Harry Potter, as aventuras fantásticas do bruxinho, de J. K. Rowling.
        Cada um, à sua maneira peculiar, me encantaram. (Isto, comentando apenas os livros de ficção).
        E agora…Essas crônicas de George R.R.Martin.
        Sei que está passando o seriado na HBO, mas nada, nada no mundo substitui a caracterização de nossos próprios personagens, dentro de nós.
        Diariamente eu me reservo algumas horas para viajar com Sansa, Eddard, Aria, Tyrion, Daenerys,os homens de negro, os lobos gigantes, pelos Sete Reinos, pela Grande Muralha, torcendo, sofrendo, rindo e chorando com eles. E que delícia de aventura!
        Abaixo, algumas ilustrações da edição em inglês:

          

          As cores da noite

          Lentamente a cidade vai escurecendo, e já uma enorme lua cheia ilumina o céu. A lua é um carimbo cintilante que ora aparece, ora desaparece por trás dos biombos de nuvens…A noite nasce e, coisa estranha…nenhuma lâmpada se acende! Escurecem postes, ruas, praças e quintais. Escurecem prédios, casas, quartos e varandas. Custa-me um pouco entender o que se passa: Falta luz! Luz elétrica! Uma nova circunstância instala-se ao meu redor a partir dessa escuridão primitiva, e até que novas ordens cheguem ao cérebro, sinto-me perdida. Onde coloquei os fósforos? E as velas? Enquanto penso, outra cintilação me surpreende. Um vaga- lume! Um vaga-lume risca o espaço e ilumina o breu. Há quanto tempo não vejo essa pequenina lanterna voadora que pisca e pisca desenhando imaginárias rotas aéreas nos jardins? O mesmo período em que não me sento na varanda com o único compromisso de observar a noite e suas cores…A noite e seus sons…A noite e seus odores. O mesmo em que não desligo voluntariamente as luzes artificiais e deixo-me envolver, eu também, por essas trevas benfazejas que me lançam numa quietude de alma que contagia corpo e mente. Uma antiga seresta ecoa dentro de mim: Noite alta, céu risonho, a quietude é quase um sonho, o luar cai sobre a mata, qual uma chuva de prata de raríssimo esplendor… Longe, lá no horizonte, (vejo?) intuo essa mesma claridade delicada pousar sobre a Mantiqueira. Ah! A Serra deve estar coalhada de pontinhos luminosos! Recordo-me de uma noite como essa, no topo da Pedra do Baú, quando, reunida a um grupo de amigos, eu aguardava pelo espetáculo de um raro eclipse lunar. A cidade a nossos pés, lentamente vestia-se de luzes, enquanto nós, sentados sobre a pedra éramos brindados pelo bailado em espiral de tantos pirilampos, que o eclipse tornou-se secundário. Ali, ninguém sentiu em momento algum a falta de claridade, pelo contrário, mergulhamos em nosso universo particular com seu próprio ritmo de luz e sombra. Mas, nessa noite de agora,Tão longe da Mantiqueira, meu olhar pousa sobre a imensidão dos pampas e a lua, que flutua no céu, sinto que me observa. Sua longa veste é de tule azul estampado de estrelas. Ela está acordada revelando todo o esplendor de seu rosto cheio, enigmático, sereno. Lua/ Ártemis/ Hécate, décima nona carta dos arcanos maiores do Tarô, de tantas variadas faces que se alternam na penumbra e também em nós, permitindo que nossa alma se manifeste, igualmente, em seus variados nuances, humores e disfarces. Para ela compomos versos e canções, inventamos que um dragão alado a habita, enviamos sondas e foguetes. Protetora de magos e de amantes, será que ela própria adivinha toda a força que canaliza e reflete? Sem ela, o céu noturno perde todo o mistério e magia. Sem sua presença, o que seria de nossas fantasias? Haveria cenário para histórias de lobisomens, bruxas, fantasmas e vampiros? Que princesa perderia seu sapato de cristal fugindo em desabada correria antes que os primeiros raios de luz solar a alcançassem e rompessem o feitiço das fadas? Ah…somos criaturas lunares pois é à noite que se revela nossa essência permeada de emoções e necessidades, às vezes inconfessáveis, e a fantasia galopa solta ao sabor da aragem noturna. Com o nascer do sol o encanto se desfaz, a fantasia termina e somos atirados de volta á realidade de trabalho, compromissos, correria e tantas indelicadezas. Somos criaturas lunares, e, no entanto, quase não nos permitimos vivenciar esses encontros que alimentam nossa criança interior, nos acalentam e acalmam. Permiti-mo-nos, tão pouco, resgatar a mágica sinfonia da noite composta de luz e movimento, que só em quietude de alma podemos ouvir sentir, entender e possuir. (Ludmila Saharovsky)

            

            Lua de São Jorge

            Lua de São Jorge/ Lua deslumbrante/ Azul verdejante/ Cauda de pavão
            Lua de São Jorge/ Cheia branca inteira/ Oh! Minha bandeira/ Solta na amplidão
            Lua de São Jorge/ Lua brasileira/ Lua do meu coração
            Lua de São Jorge/ Lua maravilha/ Mãe, irmã e filha/ De todo esplendor
            Lua de São Jorge/Brilha nos altares/ Brilha nos lugares/ Onde estou e vou
            Lua de São Jorge/ Brilha sobre os mares/ Brilha sobre o meu amor
            Lua de São Jorge/ Lua soberana/ Nobre porcelana/Sobre a seda azul
            Lua de São Jorge/ Lua da alegria/ Não se vê um dia/ Claro como tu
            Lua de São Jorge/ Serás minha guia/ No Brasil de norte a sul
            (Caetano Veloso)

            Hai cais para a primeira lua cheia do ano

            Grávida de sol
            Solta na amplidão
            Resplandece a Lua

            No veludo azul
            Grande, linda e nua
            Surge, soberana, a lua

            O dragão subjugado
            Eterniza São Jorge
            No espelho encantado

            (Ludmila)

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