Anotações dedicadas a Kherima (final)

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Chegamos juntos ao Museu, pois o prof. Victor Staviarski me deu carona.
Eu, de ansiedade, nem havia dormido direito, aguardando que amanhecesse. E finalmente… amanheceu.
O que eu esperava que acontecesse no Museu? Não sei. Não havia nada que me ligasse àquela personagem, a não ser a curiosidade; nada de relevante que eu quisesse lhe perguntar. O que ela teria para me dizer? Se é que diria algo… Assim, ao mesmo tempo em que tentava não alimentar qualquer expectativa, ansiava por alguma surpresa fantástica!
Durante nosso trajeto, da Tijuca até o Alto da Boa Vista falamos pouco sobre Kherima. O prof. não queria me impressionar relatando fatos que, depois, me mostrou durante a nossa entrevista em sua casa. E que fatos!
Chegamos à sala onde estava o sarcófago coberto por uma tampa de vidro. Prof. Victor pediu a dois auxiliares que arrumavam a sala para que o ajudassem a retirá-lo e a pousá-lo sobre o chão.
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E eu me aproximei. Do sarcófago vinha um cheiro estranho, adocicado, misto de cravos, cera de abelha e pele queimada. Eu fechei meus olhos e coloquei minhas duas mãos sobre sua cabeça embalsamada. E então eu a vi. Estava comigo dentro do tempo, e o tempo não tinha passado nem futuro. O tempo era o eterno presente.
Ela era jovem, linda e vestia uma túnica leve, branca, presa à cintura por uma faixa azul celeste. Os cabelos, longos, negros, caiam soltos sobre os ombros. Os pés calçavam sandálias simples.
Eu me via jovem como ela e vestia também uma túnica clara. O sentimento que me tomava era de muito amor e alegria pelo nosso encontro, como se fossemos irmãs há muito separadas.
Estávamos numa sala ampla, de paredes brancas, de frente para uma janela, emoldurada por uma cortina reta, feito um painel que subia e descia movimentado por cordas, roldanas e pesos nas pontas. Eu percebi o mecanismo, porque Kherima aproximou-se e desceu a cortina, dando a impressão de que não queria que fossemos observadas. Mas, da porta entreaberta ao lado da janela, eu podia observar um pátio circular rodeado por casas como se fossem escavadas em pedras. No centro havia um altar grande, num formato piramidal, ao qual se subia por escadas colocadas nas suas quatro faces atingindo o topo aonde deveria acontecer alguma cerimonia. A sensação era de que estávamos prestes a participar de um evento festivo ou de um ritual.
Chegando bem perto de mim, ela me olhou fundo nos olhos e disse:
“Não se preocupe com as crianças. Eu estou cuidando de meus filhos e de você. Tudo vai dar muito certo. Não tema a água. A água é vida.” Me abraçou, me deu um beijo na face e saiu pela porta lateral.
No pátio externo, um rapaz aproximou-se dela, enlaçou-a pela cintura e os dois desapareceram em meio à aglomeração que se formava. Ela não olhou para trás e eu não os segui. Permaneci naquele cômodo amplo, bem ventilado, iluminado pela luz da manhã, com uma tristeza na alma ante a certeza de que não mais a veria.
Três meninos entraram no cômodo e vieram me abraçar.
De repente ouvi uma voz me chamando pelo nome e entrei numa espécie de redemoinho. Eu não queria sair de onde estava e voltar. A sensação de leveza e de tranquilidade que me tomava era muito grande, mas a voz insistia: “Ludmila…Ludmila…volte!”
E eu voltei. Voltei à sala do Museu e à presença do professor Victor, preocupado, me tomando as mãos, geladas, e me repreendendo pelo tempo em que permaneci fora de mim: 45 minutos. A impressão que tive era de que não haviam se passado nem 5…
Eu lhe contei o que havia vivenciado e que não tinha entendido aquela mensagem.
Eu tinha 4 filhos: duas meninas e dois meninos. De que crianças ela havia me falado, e porque apenas três meninos vieram até mim? Quem eram eles?
Hoje, até sei, mas, há 42 anos, pelo sim pelo não, fiquei muito feliz em saber que as crianças estariam bem cuidadas, fossem de quem fossem.
Quando meu caçula passou no vestibular e foi cursar a faculdade de oceanografia lá no Rio Grande do Sul, pois escolheu passar a sua vida explorando o mar e lançando-se em suas profundezas, perdeu, logo no primeiro ano, um grande amigo de turma que mergulhou e não mais voltou à superfície. Demoraram meses para achar seu corpo enganchado em pedras e algas.
Tomada por grande comoção eu só queria que ele largasse o curso e regressasse para casa, então, lembrei-me da mensagem de Kherina: “ Não tema a água. Água é vida… Estou cuidando de meus filhos e de você.” Só então eu entendi. E confiei.
Depois dessa experiência no Museu voltamos para Tijuca, mas antes passamos pela casa do professor. Ele me levou ao seu escritório e mostrou caixas e pastas com imagens incríveis de pessoas que tiraram fotos junto ao sarcófago, e Kherima aparecia ora pairando por cima deles, em algumas; noutras ela simplesmente desaparecia – o sarcófago que a continha estava vazio. Li relatos de mulheres que menstruaram ao contato com a múmia, outras que viveram experiências inusitadas: encontros com parentes que haviam morrido em acidentes, com filhos que se viciaram em tóxicos e partiram. Li relatos de reconciliações de filhos que se desentenderam e se separaram dos pais há muito tempo, de pessoas que tiveram acalmadas angústias muito íntimas, de outras que apenas passearam a seu lado e ouviram-na tocar um instrumento parecido com cítara, sempre em cenários semelhantes aos que eu havia descrito.
Ao comentar com o Professor sobre o odor forte de carne queimada que eu sentira, ele me contou que os raptores de Kherima a esfaquearam até a morte e preparavam-se para atear fogo ao seu corpo, mas seu noivo chegou em tempo de resgata-la já com as extremidades dos dedos dos pés em chamas.
Chorei. Chorei muito pelo triste destino daquela princesa que veio parar tão longe dos seus e não tinha como voltar, tornando-se uma atração museológica e trazendo centenas de pessoas para conhece-la, confinada naquela sepultura.
Dia 2 de setembro, novamente, o fogo a consumiu. Desta vez, definitivamente.
Hoje à noite, depois de passados tantos anos, eu sonhei com Kherima. Ela apenas me sorriu…

    

    Anotações dedicadas a Kherima (parte 1)

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    Era o ano de 1976. Meus sogros moravam na Tijuca, na rua Henrique Fleiuss, e eu com os filhos pequenos passava com eles todas as férias de verão. Saíamos de Jacareí antes do Natal e retornávamos em março, com o início das aulas escolares. Foi um tempo muito feliz, quando conheci pessoas muito interessantes, entre elas, Guimarães Rosa, amigo de longa data do padrinho de meu marido e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, dr. Raul Floriano. Dr. Raul residia num lindo palacete, cujo segundo andar inteiro era ocupado por sua biblioteca. Todas as noites, após o jantar, nos reuníamos para tomar um licor “digestivo” de jabuticaba e conversar, com seus convidados sobre literatura, novos autores e os clássicos, seus muito queridos.
    Eu havia começado a escrever crônicas para o jornal O Combate e me sentia importante demais nesta função. Aliás, só quem escreve sabe da satisfação de ver seu artigo publicado, ainda mais numa coluna pessoal. Dr. Raul e d. Lilica (Cecília) sua esposa, sem filhos, me adotaram e apadrinharam. Dr. Raul corrigia meus textos, dava dicas de assuntos interessantes, me apresentava aos seus amigos como “essa menina, mal saiu da adolescência e já virou cronista”. Eu não cabia em mim de alegria e me empenhava em escrever cada vez mais e melhor! Foi Dr. Raul quem me presenteou com um raro e esgotado exemplar do Dicionário de Palavras Afins, que guardo e consulto até hoje, e também com obras autografadas de Drummond, mineiro como ele e seu grande amigo, Rachel de Queirós, Osman Lins, Affonso Romano de Sant’anna (colega de meu então marido no Instituto Granbery de Juiz de Fora). Foi ele também quem me apresentou a outro vizinho de rua, que como nós participava dessas reuniões: Professor Victor Staviarski, membro da Sociedade dos amigos do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, egiptólogo e um homem de muitas e incríveis histórias. Prof Victor havia começado a dar cursos de egiptologia e escrita hieroglífica, na seção de egiptologia do Museu ao som de óperas como Aida, de Giuseppe Verdi, e contava uma incrível história sobre a múmia apelidada de Kherima, que fora trazida ao Brasil num caixote de madeira em 1824. Dois anos depois, ela foi arrematada em leilão por Dom Pedro 1º, que a doou ao então Museu Real, fundado em 1818 e instalado à época no Campo de Santana, na região central da cidade do Rio de Janeiro.
    Kherima destacava-se por apresentar um tipo de enfaixamento muito diferente do usual: seus pés estavam enfaixados em separado, e não juntos, e havia uma “rede de Osiris” sobre seus órgão sexuais, e não sobre o coração, como mandava a tradição dos embalsamentos, para que o Osíris o principal deus do panteão funerário e Grande Juiz no Tribunal da pesagem do coração, entendesse e perdoasse as suas faltas. “No caso de Kherima, esta rede foi colocada no baixo ventre para preservar a sua virgindade”, explicava o Prof. Até então, ela não tinha nome. Era identificada apenas com o número que lhe fora atribuído no leilão.
    Pois bem, a historia que o Prof. Victor nos contou naquela noite, foi a de que recebera uma carta de uma jovem lhe agradecendo por tê-la salvo do suicídio. Era uma de suas alunas, e lhe escrevera porque, deprimida, havia passado muito tempo juntando remédios para tomar e dormir para sempre. Numa das aulas, em que o prof. permitia que os presentes tocassem a múmia, ela o fez e imediatamente entrou em transe: a mulher mumificada a guiara em sua própria morte, por lugares horríveis, segundo ela, destinados aos suicidas. O terror pelo qual a moça passou fez com que chegasse em casa e jogasse fora todos os comprimidos, escrevendo em seguida ao professor.
    A este caso, seguiram-se outros, com cartas vindas de diversos lugares do Brasil e pessoas indo ao Museu para ver e tocar a múmia. Um desses grupos pediu ao professor, licença para fazer uma reunião espírita junto ao sarcófago. Foi quando Kherima revelou seu nome. Era, na verdade uma princesa egípcia, herdeira do trono, uma vez que sua antecessora não tivera filhos, e que tramou seu assassinato. Ela fornecera datas, nomes, local do atentado, e a explicação para a rede de Osiris colocada sobre seu baixo ventre: Fora feita por seu prometido que queria preservar sua virgindade para o encontro de ambos numa vida futura. O Prof. Vitor, munido dessas informações conseguira entrar em contato com o Rei Farouk, indo ao Egito e confirmando as informações sobre Kherima, viagem que descreveu num livro intitulado “Kherima, o mistério de uma princesa”.
    Não preciso dizer a vocês que saí impressionadíssima com esta história e perguntei ao Prof. se eu também poderia tocar a múmia e ver que experiência eu teria. Ele permitiu, assim, numa segunda feira, dia em que o Museu permanecia fechado para a visitação pública, nós fomos lá e a experiência que eu vivi, publiquei nessa matéria da Revista Jacareí de 1976. Vou reconta-la para vocês em breve!

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