Não vou para onde meus pés me levam.
Tanto céu, tanto mar…
Levam-me as ondas.
Levam-me as nuvens.
Os olhos? Eles acompanham a linha do horizonte,
sem pressa de chegar,
enquanto eu me alongo,
enquanto adelgaço-me em palavras azuis,
ao sol desta manhã
na qual viajo.
(Ludmila Saharovsky)
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Confidências
Rememoro seu rosto. Colho seus gestos de carinho. Às vezes, sinto necessidade de fechar os olhos para lembrá-lo melhor. Para sentir o timbre de sua voz reverberando em minha alma. Para percorrer com inteireza este itinerário que você deixou traçado.
Estando só, refugio-me na escrita: árdua ocupação de compreender a vida através dos signos. Alguns de luz. Outros mergulhados ainda numa nebulosidade que, inconsciente, também, por vezes, me acompanha. Escrevo para falar-lhe de meus sentimentos e emoções, mesmo sem a certeza de que me lerás, um dia.
Caminho pela casa, reconhecendo agora nela, um território marcado por sua passagem: aqui uma agenda, ali uma camisa, o incenso, nosso pijama compartilhado, os rachis. No livro de poemas, um bilhete seu falando de amor. O cheiro ocre de madeira queimada vindo da lareira da sala, o vinho reservado para as conversas noturnas, os jornais.
Transporto-me, às vezes, também, para um outro espaço inundado de livros. A cama, que compõe um cenário minimalista, está vazia. Recortes, pastas, anotações amontoam-se sobre a escrivaninha. Um armário engole a desordem de roupas sobrepostas. Ali, uma tarde, meus dedos desfiaram seus cabelos e pela primeira vez seus braços embalaram minhas fantasias e os sonhos.
Quero viver uma paixão tranqüila, você me disse, como se o amor pudesse existir sem sobressaltos!
Quero viver uma paixão tranqüila, e eu desejosa de protagonizá-la, adentrei na eternidade, observando meu próprio nascimento, nessa outra concepção de tempo. Um tempo oblíquo, eu diria…
Hoje, digo seu nome e estremeço. Estremeço de saudades, desse tempo que não se revelou.
(Ludmila, anotações para o monólogo A pedra e o lago)
Sudário
Amado, regressei do Peloponeso: Corpo em frangalhos, mente abstraída, alma anelando pela placenta do mar, aquela, onde hibernam todos os navios naufragados, com seus cardumes de estrelas e de medusas.
Hoje eu quero um útero materno onde me alojar e óleos aromáticos para untar-me a pele ressecada. E quero uma veste alvejada e macia, rescendendo a incenso e mirra…eu quero!
E desejo também um anjo que me traga a noite nos braços e uma lua antiquíssima para inspirar meus sonhos e iluminar meu leito com sua aura prateada.
E necessito que tu me encontres logo, dentro do encantamento do sono, quando abro todas as portas para permitir que adentres e te enredes em meu corpo, mais uma vez.
Assim, entre cortinas brancas de nuvens e esse perfume de cedros que emana de tua pele, que pressinto, eu me tranquilizo. E relaxo. E me absolvo de todos os pecados, e dizendo amém, beijo a lembrança de tua boca na minha e, enfim, adormeço.
Ludmila Saharovsky
do livro Cronistas e contistas contemporâneos, da Editora Scortecci)
Memória marí(n)tima
Entre o anoitecer e o silêncio, percorro mares da memória, em paisagens de antes, que já não me pertencem.
A solidão abraça-me e me acompanha. Ela me é necessária pois me transporta a um tempo que eu gostaria de eternizar. Ela preenche meu sangue, dilata-se, bate com seu ritmo compassado em minhas veias, e reanima outros pulsares, inconfessáveis, de íntimas inundações. Assim, sem qualquer resistência, me entrego. Recordar é outra forma de habitar o tempo!
Súbito, teu rosto amado desliza pelas ondas e me alcança. Essa presença inesperada é como brisa tênue que me envolve. Farol de luz num oceano de tormentas. Perturba-me ainda o ardor, teu corpo curvado sobre o meu ao peso da ternura. Escuto tua voz latejando no centro do que fui, num lugar de praias e gaivotas. Ali eu te guiava, a alma estremecida por tremores, a pele devastada por arrepios, enlouquecida pela intensa vigília a que me obrigavas: ora vinhas do norte, ora do sul, as caravelas trazidas pelo vento. Buscavas em mim os infinitos, a transparência luminosa das manhãs, vôos selvagens, novas correntezas. E eu me abria, sem reservas, ao toque leve de tuas mãos. E, a partir dessas vivências, fomos desenhando a rota para um percurso que guardamos em segredo. Só esqueceste de dizer-me que eu seguiria só.
Agora, perco-me nesse espaço de memória e vigília, tão dolorida de saudade, no qual a neblina tem o poder de encobrir historias, transformando-as em lembranças.
Navego sem destino por esse mar de dentro, sem porto nem enseada, perseguindo o que não vivi. Falta-me teu sopro de alegria, teu cheiro, teu gemido. Estremeço, não mais pressentindo a certeza, mas a fragilidade. Aves marinhas ciscam minha alma em busca de um alimento que não possuo. Só seixos, conchas vazias e troncos retorcidos compõem essa paisagem corroída pela maresia. Desde que te exilaste de mim, sou toda calcário e sal. Estátua muda pendendo da proa de um navio fantasma. Olhos vazados intuindo o nascer lento do sol, deixo-me levar pela corrente. E rememoro. Rememoro para alcançar o inalcançável. Relembro, tentando trocar o amor pela memória dele mesmo.
Relembro, que é meu jeito obsessivo de te reencontrar, navegando nas águas de tua ausência. Finalmente o dia surge, e a dor da tua partida joga-me violentamente de retorno à vida. Por pouco tempo. Sol posto, volto a navegar!
Ludmila Saharovsky
(texto publicado no jornal O Valeparaibano)
Gavetas e gravetos
…a gaveta cheira a guardado. E no fundo, canto direito, herança da meninice, jaz um pequeno baú e seus tantos segredos. Entre inúmeros bilhetes de amigos, encontro um pequeno papel,recortado, de bordas coloridas. Uma dobradura rudimentar que se abre e abre, até formar, dentro de quatro pétalas, um coração atravessado por uma flecha, e duas iniciais. Ah! as coisas extraordinárias que nos chegam às mãos, quando resolvemos visitar o passado! Desde trevos ressequidos aguardando a prometida sorte que passou por nós (passou mesmo?) até um graveto, delicadamente embrulhado em papel toalha, amarelado, da frondosa árvore sob a qual trocamos aquele primeiro beijo e o corpo descobriu a alquimia das águas! Mais: três moedas chinesas, com um orifício no centro, que eu achei tão estranhas e bonitas e você me ofertou! (um tesouro raro) Mais: o escaravelho verde esmeralda, completamente mumificado, estilhaços de um pequeno espelho que refletiu, quem sabe, pequenas transgressões, já que as grandes não se guardam em gavetas para a posteridade! Diante desses ícones do passado, desses sargaços envolvidos na rede da saudade, os sentidos reclamam da falta de visitas à infância e adolescência, que simplesmente deixamos de lado, como a uma agenda antiga, sem serventia, mas da qual não nos desfazemos, não me pergunte porquê!
Urge nomear um guardião para essas memórias! Um outro em nós, que revolva periodicamente caixas e baús e nos guie, pelo fio de sentimentos abandonados, de volta ao nosso próprio labirinto, onde nossa juventude interna teima em se conservar intacta e indecifrável em seus anseios. Quanta vida não resgataríamos! Tantos retratos esmaecidos pelo tempo, impressões digitais pousadas nas cartas, antigas cadernetas escolares, as notas vermelhas gritando outras noturnas opções que nos permitiam o estudo de inusitados rios e cordilheiras com exercícios de química e física quase quântica! Aqui, um ingresso para cinema com o telefone anotado, ali um lenço masculino outrora impregnado pelo aroma do “Lancaster” hoje apenas pressentido, pairando sobre ele feito aura, medalhas conquistadas no vôlei escolar, o cartão das primeiras rosas recebidas, cujas pétalas conservam-se transparentes no envelope, lembranças mutiladas, quase desfeitas. Ah! E o papel cor de maravilha do sonho de valsa, que me fez, verdadeiramente, dançar de felicidade!
E os olhos? Nossos olhos de antigamente, sonhando um futuro que passou tão rápido que já se fez passado! Como era instigante olhar para dentro do tempo e imaginar a vida florescendo em nós, estendendo-nos um tapete de relva verde, sempre macio, que iria recolher nossas pisadas. Onde você perdeu-se de mim, neste passado?
Bom…as vezes o universo conspira e reencontros acontecem!
(Ludmila)
Confidências
Hoje, choquei-me contra a realidade do céu azul
e a palavra que queria dizer-te, espatifou-se em minha boca.
Virou suspiro, virou soluço, virou saliva, virou susto!
De repente, o eixo de marfim que me mantinha centrada neste mundo, equilibrada, equidistante, tornou-se uma espiral de sonhos a atravessar-me, a dividir-me ao meio:
Metade mulher, metade filigrana ornando um camafeu onde observo a estampa de meu próprio rosto.
Sou fêmea na aurora, preenchida por seixos e presságios. Deusas e demônios.
Percebes a metamorfose?
Será que mesmo assim, poderás identificar-me?
Reconhecer-me pelo meu cheiro e gosto?
Perceber esse alarido de pássaros que me atravessa a alma
e se desprende de mim, feito choro de violoncelo e cuíca em contraponto?
Ah…meu coração está repleto de candeias acesas, tochas, archotes, velas,
aguardando um rito nobre que o ressuscite, que o redima…
Estou assim, meio indefesa no universo.
A vida escorre em mim, feito areia na ampulheta: mais um grão…mais um… mais outro,
enquanto vou me consumindo nessa miragem,
abismada em profundezas infinitas…
E esse ruído de tambores distantes enviando mensagens cifradas!
Para que? Para quem? Para mim? Para ti que em mim te escondes?
Mas afinal, de quem é esse destino que se tece assim, à revelia, entre as cordilheiras?
(Ludmila)
texto publicado na Antologia Delicatta, 2011, Editora Scortecci
Brevidades
Fecho os olhos para trazer a paz da noite,
aos meus sentidos aguçados pelas miragens do dia.
As mãos tocam, na penumbra, os reflexos das paisagens que adivinho.
Sementes brotam por entre o silêncio fértil dos musgos
e pássaros pontuam os galhos com seu aroma de asas.
O campo inteiro canta sob o céu seguro pelas mãos do vento.
O regato corta ao meio a pradaria.
A garça pousa na linha do horizonte.
A rã congela o salto na vertigem da queda.
E eu, em transe, inspiro, sôfrega, o odor verde do campo
e me alucino.
(Ludmila S.)
Palavras
Para que escrever?
Para registrar, gravar, imortalizar, aprisionar um instante, uma idéia, um acontecimento, um estado de alma, uma emoção. Fertilizar o tempo com palavras que poderão brotar no branco do papel e contar histórias.
Para quem escrever?
Para nós mesmos, a princípio, para que não se perca o fio da meada que, às vezes, desenrola-se sem que consigamos recapturá-lo, mais tarde, nos labirintos da mente.
Escrever para o outro, para que penetre em nossos pensamentos e nos conheça e reconheça traduzidos em palavras, mas, sem revelar, jamais, a nossa essência.
Essa, pertence a um estado anterior às palavras coloquiais, acertivas, descritivas e só se pode vislumbrá-la, através da poesia.
(Ludmila S.)
Sopro Criador
Para onde quer que vás
meus olhos náufragos te seguem.
Nua de pudores, busco-te pelas planícies,
faminta de desejos. E pelo mar.
O tempo me atravessa permeado de histórias
e me embriaga de lembranças e lamentos.
Ele abandona-me, sempre, em terras de exílio
tão distantes das rotas ansiadas…
Procuro nas estrelas o reflexo da esperança.
Em vão! Sua voz ecoa além das palavras
que se estilhaçam e transformam-se
em sopro criador. Que código é esse
que transcende o silêncio
e se faz vertigem?
(Ludmila S.)
Paisagem íntima
O jardim coagula as cores da noite
que a lua rasga, enquanto cresce no céu,
prenha de paisagens cintilantes.
Dormem os cravos e os gerânios.
Dormem os pardais e as abelhas.
Mimetiza-se o lagarto na grama orvalhada
e o vento faz sua ronda costumeira
entre os ciprestes.
Balança a renda da teia estendida na cumeeira,
balança o balanço, balança a roseira,
e eu, dentro da noite,
aguardo as musas, essas…que não chegam!
(Ludmila S.)