Para Erik: Conto de Desninar

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Conto de Desninar ou, uma noite na fazenda

A noite já andava pelo meio, ou assim me pareceu, quando meu caçula, os olhos bem abertos, acordou-me, rolando sobre meu corpo e parando ao lado da cama larga da fazenda. “Mãe!”
A luz do abajur acesa, encontrei-me dentro dos olhos de meu filho, grandemente abertos pelo que precisavam me contar. “Levanta mãe!” “Levantar para quê?” argumentei morta de sono. “O bezerro tá comendo os antúrios da vó”. “Os antúrios?” “Logo os antúrios? “Volte para a cama e vê se sonha que ele come alguma flor diferente” Mãe, ele brilha”! Volte para a cama, antes que eu fique brava!” “Ele brilha, mãe! Venha ver!” Levantei-me sonolenta e caminhei para a porta que se abria para os canteiros. “Cadê o bezerro, filho”? No céu, a lua imensa iluminava todo o quintal, e mais nada. “Ele estava lá, mãe, no meio do jardim… você demorou para vir, ele foi embora.” “E posso saber o que foi que o senhor veio fazer no terraço de madrugada?” “Ver o bezerro, ele estava fazendo barulho.”
“Menino, já pra cama! E ele foi… pra minha! Ajeitei-me da melhor maneira, para conseguir o diminuto espaço que restou do travesseiro, pensando que fosse dormir!”
“Mãe, e se ele comer as rosas também?” “A vó vai ficar bravona“. “Mãe, você já viu bezerro luminoso”? “Mãe, que cor que é luminoso?”
Como dormir com meu filho me questionando , abrindo, a cada pergunta, meus olhos com seus dedinhos e atiçando-me a imaginação com aqueles detalhes fantásticos?
“Mãe, se amanhã ele ainda estiver lá, você deixa ele ficar para mim?” “Mãe, e se ele for embora?” “Mãe, escuta… o barulhinho de novo. Vamos, mãe, vamos!” “Filho, pelo amor de Deus, amanhã tenho que levantar cedo!”
“Então fica ai, que eu vou só dar uma espiadinha”.
“Corre, mãe, corre, ele voltou”!
E lá vou eu, de novo: os chinelos, o roupão, a porta da varanda, a lua cheia e … mais nada!
“Filho, não tem bezerro nenhum”. “Ô, mãe, você está cega? Ele está comendo o antúrio branco!”
Coloquei a mão na testa de meu menino. Estaria com febre, para delirar daquela forma? Mas não! Beijei sua cara fresquinha, sentando–me com ele ao colo, no sofá.
“Você sabia que bezerro come flor?” “Sabia não!”
“E a avó, amanhã, heim…” “Ela não vai acreditar!”.
Vencida pelo cansaço, resolvi ceder: “Pois é, descobrimos um bezerro que se alimenta de antúrios”.
“Ah, mãe, te peguei! Você estava vendo e não queria que eu soubesse, não é?” “Verdade! Eu queria só dormir!” “E agora?” “Agora já passou.” “Então vamos espiar de novo?” “Vamos!”
Não adiantava mesmo, afinal, ou eu via de uma vez o tal do bezerrinho comedor de antúrios, e a gente voltava para a cama, ou passaríamos a noite inteira naquele viu-não-viu.
“Mãe, como será que ele se chama?”
Acho que se chama Raíto. E você, o que acha?”
“Eu acho que ele se chama Ventania.
“E porque Ventania?” “Ué, vento não é transparente?”
“Mãe, como você acha que ele veio parar no meio do jardim?”
“Não sei… voando talvez!” “Sem, asas?” “Sem asas”.
“Que jeito?” “Do jeito que vento voa…” “Mãe, e os antúrios da avó?” “Amanhã a gente resolve…” “Gozado, né, mãe!”
“Gozado o quê?” “Bezerro transparente comer flor… como é que ela não aparece na barriga dele?” “Ele mastiga até virar suquinho.”
“Mãe…” e Erik fechou os olhos, vencido pelo sono, finalmente!
A manhã chegou rápida, e com ela os afazeres. Levantei-me cedo. Era domingo e uns amigos viriam para almoçar. No banho surpreendi-me com as lembranças da noite mal dormida. Criança tem cada uma!
Saí do casarão e fui colher algumas flores, no jardim, para enfeitar a sala.
Diante do canteiro dos antúrios, perdi por instantes a respiração. O coração disparou dentro do peito! Realmente não havia uma flor sequer, em meio às folhagens, que ontem estavam tão enfeitadas.
Engoli em seco e uma única questão passou-me pela cabeça: o que eu diria para a avó, quando ela chegasse? Então, ensaiando, falei alto para mim mesma:”Samaria, a noite passada, um bezerro luminoso, de nome Raíto ou Ventania apareceu no seu jardim e comeu todos os seus antúrios!” Depois, o Erik que lhe desse maiores explicações, afinal, o bezerro era dele!”
(Ludmila Saharovsky)
Escrito para meu filho caçula em seu sexto aniversário, em 4 junho de 1978 e publicado no jornal o Jacareiense no mesmo ano.

Meu rebento, com o seu rebento. Erik e Lórien

Meu rebento, com o seu rebento. Erik e Lórien

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