Mal abria os olhos, e já o botão apertado, ligava o televisor.
Arrumava a casa, ouvindo as primeiras notícias da manhã.
Lavava a roupa plugada na Ana Maria Braga. Fazia o almoço com as receitas do Universo feminino. Arrumava a cozinha revendo Saia Justa. Cerzia meias sonhando que era Angélica, o corpo escultural, o casamento perfeito. Tomava banho entre dois plim plins e jantava entre lágrimas, torcendo para que Cauã Reymond descobrisse quem era seu pai.
A rotina perdurou até a noite em que, extenuado, o televisor fulminou-a, com certeiro tiro, na Ultima Sessão Bang Bang. (Ludmila)
Arquivos da Categoria: contos mínimos
Conto mínimo: Sutilezas
Uma vez por dia, religiosamente, ela levantava-se do confortável sofá e apanhava, da estante, uma caixa entalhada em cedro, repleta de pequenos orifícios.
Cuidadosamente, retirava dali a víbora, que a picava sempre no dedo indicador, sem deixar vestígios. Entregava-se então ao prazeiroso torpor daquele veneno, administrado em doses homeopáticas, que promovia nela, tenues transformações.
Deu-se por satisfeita no dia em que, ouvindo as costumeiras reclamações do companheiro, exibiu toda a sua impaciência, chacoalhando, irritada, os sonoros gisos que se lhe afloraram na ponta dos dedos. (Ludmila)
Conto mínimo: O cavalo de Tróia
Reorganizou por assuntos, os livros perfilados na estante da sala.
Todas as manhãs, porém, a casa amanhecia num completo cáos.
Custou a entender que gregos e troianos, mesmo os séculos passados, jamais conseguiriam conviver em paz, mas, teimosa, resolveu não interferir na arrumação estabelecida.
Agora, o cavalo enorme, construído no alpendre, aguarda passivo, o momento de entrar, novamente, em cena…
(Ludmila)
Conto mínimo: O dente de marfim
O dente de marfim daquele mamute ancestral, primorosamente esculpido com cenas de luta, recuperou sua memória há séculos adormecida e, num rompante de energia, estraçalhou, de um só golpe, o pesado vidro da vitrine onde jazia exposto. Os vigias noturnos foram as primeiras vítimas que os valentes guerreiros da dinastia Shang fizeram, montados em seus elefantes ricamente adornados para a histórica batalha.
(Ludmila)
Conto mínimo: com vista para o mar
Economizou a vida toda para comprar o apartamento de seus sonhos: décimo andar com vista para o mar! Mas, o imóvel que conseguira, era de fundos. Não desanimou. Comprou todos os apetrechos e…mão à obra! No dia da inauguração, os amigos, maravilhados, puderam observar a Baía da Guanabara, salpicada de luzes, surgir magestosa, na janela pintada no paredão da sala. (Ludmila)
Conto mínimo: A caminho
Colecionava elefantes: indianos, africanos, cartagenenses, persas. De louça, madeira, cristal, pedra da lua, pedra da rua…
Todas as noites sentava-se sobre o carpete verde e admirava sua manada, viajando com ela pela imaginária floresta da sala.
Na primeira excursão demorou-se alguns minutos.
Na segunda, algumas horas.
Na terceira, já com experiência adquirida, guiou seus elefantes até o oásis escondido entre as dunas do jardim, e lá começou uma nova história.
(Ludmila)
Conto mínimo: Viagem
Embarcou na estação para o inadiável compromisso.
Distraiu-a a beleza da paisagem, o sol se pondo no horizonte, o V dos pássaros cruzando o céu em vôo de regresso.
Abstraiu-se tanto que, chegando ao seu destino, esqueceu-se a que veio, assim, nem saiu do trem, iniciando a viagem de retorno. Talvez na estação de embarque, conseguisse relembrar.
Reembarcou no trem para o inadiável compromisso…
(Ludmila)
(Ofereço este conto mínimo ao meu amigo Alcemir Palma, porque ele os coleciona e distribui entre os amigos)
Conto Mínimo: Modernidade
Não tinha mais jeito. Ela sobrava em casa.
Desde que a máquina chegou, que o marido, que os filhos, que os amigos viviam hipnotizados.
Emitindo estranhos sons e luzes o instrumento resolvia tudo: a conta bancária, as compras da semana, os deveres de escola, as horas de lazer e de prazer. Sua intimidade com o circuito foi surgindo lenta. Primeiro a rotina do pó, retirado a cada dia, depois, o suave toque nas teclas, a abertura de janelas e o diálogo estabeleceu-se, embora em língua estranha. Íntimas tornaram-se nas tardes vazias, tão íntimas que, um dia, chegando a família em casa e dirigindo-se diretamente à sala do computador, botões ligados, a mãe sorriu-lhes feliz, de dentro da tela. (Ludmila)
Contos mínimos: Amor perfeito
Vida prática era o que queria.
Roupas descartáveis, comida congelada, fogão de micro ondas, flores de crepom.
De volta do escritório, a casa já não lhe dava trabalho.
O que o fazia perder algum tempo, era inflar a mulher que lhe servia de companheira nas noites insones, mas, o bujão de ar comprimido já estava encomendado…
(Ludmila)
Contos mínimos: O colecionador
A borboleta vermelha, acomodada entre vidros, na parede da sala, foi o primeiro inseto de minha coleção.
A ela seguiram-se grilos, besouros, mariposas, libélulas, escaravelhos, que ocuparam caixas, gavetas,estantes, prateleiras. Hoje, meu filho veio confirmar que seguirá meus passos. Preso por finos alfinetes ao veludo negro, ele veio mostrar-me, capturado, o sorriso da primeira namorada.
(Ludmila Saharovsky)