Encontros fantásticos (final)

Nossos contatos com a escola do Chile prosseguiram por mais dois anos. As dificuldades foram crescendo à medida que as autoridades começaram a se interessar, sobremaneira, pelos motivos que nos levavam à Santiago com aquela frequência. Não eram tempos tranquilos. Começamos a temer pela segurança de nossos amigos, bem como eles, pela nossa. Assim, a rotina das aulas precisou ser interrompida. Só não imaginamos que o seria para sempre! Seis meses após nossa última viagem recebemos um telegrama que nos participava a morte de nosso mestre e a suspensão dos encontros. Ele sofrera um enfarto. E depois disto, o silêncio.
Nesses dois anos, estivemos no Chile em muitas ocasiões. Não mais, todos juntos. Viajar em grupo e constantemente, levantava muitas suspeitas. Cada vez, as lições tornavam-se mais extensas e mais complexas. Elas não implicavam em mero conhecimento intelectual. Elas continham exercícios e posturas na vida que nos incitavam à grandes mudanças interiores, que só percebemos que ocorreram, com o passar do tempo. Tornamo-nos mais tolerantes com nossas próprias limitações, mais atentos e entregues à alquimia secreta da vida que se opera em cada ser. Tornamo-nos mais livres em nossos conceitos. Mais seguros, mais felizes. Perdemos aquela ansiedade natural que acompanha o nascente buscador, de envolver a todos em sua verdade, em seus conceitos, em sua escola: a família, os amigos, os colegas de bairro e de trabalho. Entendemos que a verdade é uma e única, em suas várias faces. Entendemos que a busca levará a cada um de nós, pelo seu próprio caminho, em seu próprio tempo, rumo à essência da vida, da qual todos surgimos. E este é um processo inevitável. Compreendemos que o renascer da consciência espiritual se processa muito devagar. E que a consciência espiritual nada tem a ver com religião.
Hoje, eu entendo claramente que o período do Chile foi na verdade, mais um degrau vencido em minha jornada particular nessa busca incessante pela resposta a “Quem eu sou, de onde venho e para onde vou?”. A frustração, o estado de abandono, o sentimento da perda de tempo e de energias por dois anos, foi sendo substituída pela certeza de que nada é em vão. Pela certeza de que a continuidade do caminho se faz interna, e não externamente. Pela convicção de que não existem barreiras físicas, mentais, espirituais que nos separam uns dos outros. A única barreira que existe é a da ignorância e do egoísmo, que geram a intolerância e o desamor, mas, perseverando sempre, também acabaremos por extingui-la.
Nosso grupo, pelas circunstâncias da vida, acabou se separando, mas não nos perdemos uns dos outros. Apenas entendemos que chegara a hora de cada qual seguir por sua conta e risco o próprio destino. E o meu, prosseguiu colocando em meu caminho, pessoas notáveis. Falarei delas nos próximos escritos.
Obrigada por sua leitura!
(Ludmila Saharovsky)
Esta matéria foi publicada no jornal Regional News, na seção Tertius Millenium. em 2002

    

    Encontros Fantásticos IV


    “….Subitamente contemplo surpreso longas caravanas de caminhantes que, chegados como eu a esta senda, com os olhos adormecidos na lembrança, cantam canções para si mesmos e recordam. E algo me diz que mudaram para se deterem, que falaram para se calarem, que abriram os olhos atônitos ante a festa das estrelas para os fecharem e recordar….”
    (fragmento de “A Luta pela Lembrança” do livro “Para nascer nasci” de Pablo Neruda)

    Uma suave melodia ecoava pelo ambiente: Som de instrumentos de corda, sinos, ondas e vento. Algo parecido com o que hoje chamamos de estilo New Age. Parados, um ao lado do outro, permanecemos ali, aguardando o desenrolar daquela iniciação. Não sei precisar quanto tempo ela durou. Digamos, que foi o tempo necessário! Respondemos à questões pertinentes à nossa fé. Submetemo-nos a um ritual simbólico, associado aos quatro elementos: fogo, terra, água e ar, e por fim, juramentos recitados, fomos convidados a retirar as vendas. Estávamos dentro de um amplo salão, escavado nas rochas. Ele fora escavado durante séculos, pela água de um rio subterrâneo agora inexistente. A natureza caprichara naquela inusitada decoração. Cortinas de fragmentos de rocha rebrilhavam como se fossem de pesado tafetá. Três pedras sobrepostas formavam um altar perfeito. Pelas paredes, a dança das sombras desenhava um estranho mural de seres ancestrais que davam a impressão de nos observarem amorosamente. Ali, rostos severos de anciãos com longas e ralas barbas. Na face oposta, mulheres ajoelhadas num círculo perfeito, as mãos elevadas em prece. Asas de imaginários pássaros cruzavam o teto. Num piscar de olhos, tudo sumia, para ressurgir novamente, em outras inesperadas formas. Aqui e ali, divisavam-se algumas pedras mais limosas, mais salientes, iluminadas pela luz de velas e poucos archotes. Frente a nós, o mestre paramentado, segurava nas mãos a espada da sagração. Sobre um pequeno aparador triangular brilhava a chama trina, da vida eterna.
    Ao nosso redor percebemos uma assistência de uns vinte irmãos, sentados do lado direito e do lado esquerdo, fechando um semicírculo. Sentamo-nos dentre eles e o ritual prosseguiu, em forma de cânticos, relaxamento, e por fim, a lição daquela noite. A Ordem dos Buscadores não fornece nenhum material por escrito, nenhuma apostila. Nenhuma anotação é permitida. Todo o ensinamento é transmitido verbalmente e pessoalmente, o que a diferencia das demais escolas de mistérios, mais adequadas, hoje, à modernidade dos novos tempos.
    Com o final dos serviços, levantamo-nos, reverenciamos o leste, de onde surge, a cada novo dia o sol, e seguimos para o átrio. Retiramos as vestes ritualísticas e silenciosamente, preparando-nos para sair. Só então nos demos conta de onde realmente estávamos: No meio da montanha! Nenhuma luz, nenhum sinal de vila ou de cidade, cercados por altos cumes, debaixo da neve andina que agora caía farta. Uma trilha em meio à vegetação, iluminada por lanternas de bolso e a grande, a enorme lua cheia nos guiaram de volta. Caminhamos em fila indiana, circunspetos, até uma pequena clareira onde estavam estacionados alguns veículos. Sem grandes delongas, nosso interlocutor nos disse que, no dia seguinte nos encontraríamos com ele, agora num lugar distinto, numa cafeteria no centro de Santiago, onde receberíamos algumas instruções. A volta foi marcada pela emoção e introspecção de cada um, rememorando as impressões causadas na alma, por aquela vivência.

    Na pousada, um chocolate quente aguardava-nos.Sobre a mesa, caprichosamente posta, estava um embrulho para presente ao lado de cada xícara. Amarrada num saquinho de veludo, uma pequenina Cruz Ansata seria o único símbolo material de que agora pertencíamos àquela escola. (Ludmila Saharovsky)
    Continua na próxima postagem

      

      Encontros Fantásticos III

      O tempo arrastava-se pelos ponteiros do relógio, custando a passar. Após o almoço, finalmente, aconteceria o tão aguardado compromisso que nos levara àquelas paragens. Às 16h15 a senhora discretamente aproximou-se de nós e entendemos que chegara a hora. Saímos da pousada e ela guiou-nos pelas ruazinhas estreitas daquele vilarejo até o local indicado. Ali, um pequeno furgão nos aguardava. Embarcamos, sem as apresentações habituais. Nenhuma pergunta nos fora feita, e nós respeitamos o silêncio solene de nossos guias.
      A viagem foi longa. Cada vez mais e mais nos afastávamos de nossa vila de origem. O ar ia ficando mais frio e rarefeito pela subida. Observávamos a paisagem, enquanto a tarde anoitecia. Logo um céu estrelado fazia parte da longa e estreita estrada que serpenteava em torno das montanhas azuis. Apenas o sibilar do vento fazia-se ouvir, e a cantilena rouca do motor de nosso veículo. O frio era intenso. Num dado momento, o furgão parou, e um senhor idoso, de semblante muito tranquilo, a face recoberta por uma barba bem cuidada e gestos aristocráticos solicitou-nos que vedássemos os olhos com os lenços que nos oferecia. Obedecemos. Alguns metros adiante, o carro mudou o itinerário, fazendo uma curva abrupta à esquerda. Mais alguns minutos se passaram, até que o automóvel parasse e, cuidadosamente guiados, iniciamos uma caminhada a pé, subindo por um caminho tortuoso, apoiando-nos uns nos outros. Num dado momento, pelo eco de nossos passos e pela ausência de vento, nos demos conta de que estávamos num lugar coberto, e não mais ao ar livre. Paramos. Três batidas ecoaram e percebemos que uma porta se abria. Cada um de nós foi recebido por mãos que nos guiaram separadamente. Tínhamos certeza de que os outros estavam lá também, porem não nos comunicávamos.
      Um filete de luz, tênue, começou a passar por nossas vendas, até que percebemos que a claridade imperava. Fomos convidados a sentar e a retirar as vendas. Estávamos numa espécie de átrio amplo, semicircular, feito de pedras. Quando nossos olhos acostumaram-se novamente à claridade, percebi alguns desenhos, como jamais tinha visto, decorando as paredes iluminadas por archotes. Diante de nós estava um grande portal de madeira maciça, frente ao qual perfilavam-se homens e mulheres vestindo longas túnicas negras. Túnicas que nos ofereceram, também, e que colocamos por sobre as roupas, quando retiramos os pesados agasalhos. O ambiente era frio, mas nada igual ao que deixamos do lado de fora, durante a caminhada. O local estava mergulhado num silêncio quase palpável. No ar recendiam aromas de velas acesas e de incenso. Uma suave melodia chegava até nós, de cânticos semelhantes aos gregorianos. Pressentíamos que em breve iríamos participar do aguardado ritual de acolhimento. Nossos olhos foram novamente vedados, e a pesada porta se abriu…(Ludmila Saharovsky)
      Continua na próxima postagem.

        

        Encontros fantásticos II

        A agitação tomou conta de nós, mas precisávamos acalmar-nos, dormir e descansar da longa viagem, e assim resolvemos fazer, mas não sem perguntar, antes, à senhora, quem deixara o envelope.
        “Foi trazido por um mensageiro.”
        “A senhora o conhece?”
        Um sorriso de total aquiescência foi a resposta. E nos bastou.
        “Amanhã indico a vocês a rua de seu encontro. Boa noite! Durmam bem!”
        Dormir bem…Não me lembro de ter dormido tão bem e sonhado tanto, há muito tempo! A proximidade da Cordilheira Andina é mágica, por isso a consideram como um dos chacras do planeta terra. Dela provem uma energia que, quando sintonizada, remete-nos a um estado de paz, de beatitude, de encantamento, ímpares. Ela nos envolve num estado de introspecção e comunhão com as forças que nos governam. A gente contempla os Andes e sente vontade de chorar diante de tanta beleza. A gente admira essas montanhas e não entende porque os homens precisam viver sempre em guerra, tentando subjugar seus irmãos através da força, do medo, da opressão ao mais fraco, da imposição de seus credos e doutrinas através do terror. O mundo seria outro se caminhássemos juntos exercendo o amor, a tolerância e a fraternidade, que promovem todas as transformações.
        A gente observa a Cordilheira, aquieta-se de corpo e alma e se entrega aos desígnios dessa Energia Pura que nos trouxe à vida e, na qual todos somos Um.

        A manhã nasceu envolta por uma neblina azulada, que caía sobre a nossa pousada em leves camadas sobrepostas, transformando o cenário numa paisagem surreal. A luz azul refletida do céu, por aquele paredão de rocha vestida de neve, era a cor daquele lugar. E é a cor deste relato.
        A manhã nasceu imersa na ausência de barulhos de cidade grande: ruídos de automóveis, de pessoas, de buzinas e motores. Essa manhã brotou preenchida por alarido de pássaros, crepitar de galhos e o som dos atritos produzido pelas pisadas na neve. O cheiro bom de pão fresquinho fez com que o banho fosse muito rápido e já estávamos à postos, deliciando-nos com croissants, geleias, queijos e um inesquecível chocolate cremoso. Para nossa surpresa o salão de refeições estava tomado por hóspedes, em sua maioria bem jovens, vestidos com coloridos agasalhos e portando esquis. Saímos para dar uma volta de reconhecimento e só então nos apercebemos do quanto estávamos dentro da Cordilheira, numa espécie de clareira cercada por ciprestes e um lago enorme à nossa direita. O ar gelado nos fortificava e energizava. Caminhamos por uma alameda até o lago, sentamos-nos em silêncio e entregamo-nos à paisagem. Foi um momento de comunhão e de magia. Um momento onde cada qual mergulhou em suas próprias expectativas quanto ao significado que aquela viagem nos traria. (Ludmila Saharovsky)
        (continua na próxima postagem)

          

          Encontros fantásticos

          Ordem Arcana de S.G.de P. ( parte I)

          A noite estava gélida e clara, iluminada por uma lua enorme, quando desembarcamos, em meados de julho, no aeroporto Arturo M. Benitez em Los Cerrillos – Santiago do Chile, em plena ditadura de Pinochet. Na agenda,o endereço do hotel no qual deveríamos hospedar-nos era o único ponto de referência que tínhamos quando resolvemos aceitar o convite para o primeiro contato com a Ordem Secular.
          “Hospedem-se no Hotel Pousada Andina e aguardem contato”.
          Narrado desta forma, pode parecer loucura, mas, o mestre que viera especialmente ao Brasil em busca de pessoas certas para darem continuidade à Ordem em nosso País, conheceu-nos e aproximou-se de nosso grupo no decorrer de um ano de contatos. Contatos que culminaram nos preparativos desta viagem baseada unicamente na intuição, na curiosidade e na confiança em seguirmos o caminho traçado por nosso destino.
          O Hotel, simples e confortável, certamente não fazia parte do circuito turístico, mas ficava estrategicamente localizado aos pés da Cordilheira Andina. E a Cordilheira…Ah!…a Cordilheira… Refletindo uma luz etérea e azulada, ela nos hipnotizava com sua magnitude e imponência. Inúmeras vezes o motorista pediu para que confirmássemos se queríamos realmente aquele hotel, rendendo-se por fim à nossa certeza.
          “Devem ter recebido recomendação de algum habitante da região, porque é raro trazer turistas para cá. Fica fora do centro”, argumentou.
          Entramos num salão com paredes revestidas de madeira, minimamente mobiliado, mas que refletia um aconchego familiar. Uma senhora gorda e risonha veio receber-nos, já com as reservas efetuadas em nosso nome.
          “ Os hóspedes do Brasil! Sejam bem vindos!”
          Um quarto amplo, com sofá e lareira acesa nos aguardava. Jantamos um leve consome acompanhado por grande variedade de pães e um delicioso vinho tinto. A expectativa do inusitado encontro ( aconteceria naquela noite? ) não nos deixou dormir. Passamos algumas horas ao pé do fogo conversando, imaginando o que aconteceria, como e onde o contato se realizaria, que tipo de pessoas encontraríamos, até que nossa anfitriã entregou-nos um envelope com uma lacônica mensagem dentro.
          “Estimamos saber que fizeram boa viagem. Amanhã, as 16h30 um automóvel os apanhará na rua Tal, defronte ao número 345. Por gentileza, não se atrasem.” Assinado: H.P.T. seguido por um sinal gráfico de reconhecimento dos filiados à Ordem.
          (Continua na próxima postagem)

          Nota: Todos os nomes de hotéis e pessoas são fictícios para manter os personagens envolvidos no anonimato, conforme foi solicitado.
          O país, Chile, foi realmente o palco desta vivência.
          Ludmila

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