As Faces de Cristo

Cristo e São Neméas

Num interessantíssimo documentário produzido para a BBC (Inglaterra) arqueólogos e especialistas em reconstituição física a partir de crânios e ossadas, com a ajuda de computação gráfica, tentaram chegar o mais próximo possível de como teria sido a face de Jesus de Nazaré.
O rosto que nos acostumamos a ver, estampado em livros santos, imagens, ícones, filmes, na verdade não corresponde em nada aos milhares de tipos de esqueletos pesquisados, dos homens que viveram em Jerusalém há dois mil anos atrás. E por quê?
Simplesmente porque o biotipo da época mostrou serem todos eles de tez muito morena, pouca barba, cabelo curtos e escuros, olhos negros e traços fortes, muito semelhantes à população árabe de hoje.
Para as crucificações, eram utilizados troncos de árvores mortas, sobre os quais eram colocados paus na transversal, e, os transgressores condenados, amarrados, antes de serem pregados. Isto porque os ossos das mãos não suportariam o peso do corpo sem se partirem. Pelo mesmo motivo os pés também eram apoiados em suportes toscos.
O documentário seguiu estritamente o caminho da pesquisa histórica. Sem questionar dogmas ou escrituras. Tentando não arranhar a fé, fosse ela qual fosse.
Foram ouvidos médicos, antropólogos, arqueólogos, cientistas sociais, teólogos, espiritualistas, na tentativa de reconstruir historicamente o contexto social e político de dois mil anos atrás, sobre o qual pairam tantas dúvidas e controvérsias. Para tentar compreender cientificamente por quanto tempo um corpo humano suportaria tamanha tortura e suplícios.
Um condenado à morte pela crucificação levava sempre alguns dias agonizando.Sob o sol causticante, sem água, as aves de rapina à volta. O teste da lança era a prova derradeira do final. Ao Nazareno, estenderam uma lança com um pano ensopado em vinagre, relataram, para aumentar a sede. Alguns estudiosos levantaram a hipótese de que nele, em verdade, haveria poderia um preparado anestésico. Dopado, o corpo penderia, pareceria morto, e os discípulos poderiam recolhe-lo para preparar o ritual fúnebre, minimizando o sofrimento… Quem sabe até, argumentaram, conseguiram preservá-lo com vida.
Existe uma corrente de estudiosos, que acredita que Jesus foi salvo da morte por seus seguidores e viveu longo tempo pregando sua doutrina. Haverá os que concordam e os que discordam absolutamente desta afirmação, como sendo uma heresia. Dogmas da fé não se discutem. Aceitam-se ou não. E eu apenas relato aqui um documentário interessante.
O fato é que a existência deste Ser ímpar inspirou o surgimento de uma nova moral religiosa que sobrepôs-se a todos os cultos precedentes, ou seja, instituiu uma doutrina que pregou a ascendência da alma sobre o corpo, e a lei da compreensão, do respeito ao próximo e do perdão.
É uma pena, que dois mil anos depois, os homens prossigam matando, subjugando, humilhando e torturando, sem dor nem piedade, seus semelhantes, seus irmãos. Mas, se todos somos filhos de um mesmo Pai, e se toda a agressão é um pedido desesperado de amor, cabe a nós repetirmos e interiorizarmos as palavras do Mestre de Nazaré que no inspira. Ele, que, no auge do sofrimento, olhando para seus algozes, conseguiu dizer:
“Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem.”
Quantos de nós somos capazes de dize-lo, do fundo de nossa alma, sem julgar, sem pré-julgar, sem condenar?
Que a Páscoa não se resuma apenas à compra desenfreada de ovos de chocolate que já povoam, aos milhares, as prateleiras de todas as lojas e supermercados, e que consumiremos em nome de um renascer (que a data significa) muito, mas, muito distante de nós!
Creio ser esta uma bela reflexão para fazermos nesta quaresma que nos prepara para o reconhecimento do espírito que nos habita.
Ludmila Saharovsky
(publicado no site Regional News na Coluna Tertius Millenium, alguns anos atrás)

Leia mais: http://veja.abril.com.br/040401/p_064.html

    

    Feminino plural

    Mulheres_Plural
    Há milhares de anos, desde que as tribos guerreiras indo-europeias, que cultuavam os deuses celestes/solares, subjugaram os povos pacíficos que cultuavam as deusas terrestres/lunares na velha Europa, o patriarcado imposto vem anulando, dominando, denegrindo e subjugando tudo que é considerado feminino.
    A Deusa Mãe, adorada num período histórico em que a ciência, a religião e a moral ocupavam a mesma esfera de importância, localiza-se numa época em que os seres humanos sentiam-se parte da natureza e recorriam ao saber e à veneração das energias da Terra. Às mulheres cabia cuidar do fogo, das crianças – que pertenciam ao clã – preparar refeições, tecer vestimentas, criar utensílios, armazenar água e grãos. Por conta dessas funções sociais, foram elas que estabeleceram a cultura e conduziram a humanidade da era dos caçadores/coletores para a sociedade agrícola. A prática de armazenar alimentos para o período de estio, ensinou-lhes os ciclos da vida vegetal: grãos guardados junto ao solo, brotavam e enraizavam, podendo, portanto, ser cultivados. Foram elas que descobriram as propriedades curativas das plantas e o preparo de poções e unguentos. Foram elas que, pela observação da lua e suas fases, perceberam que a magia do sangue e o tempo de gestação dos fetos que carregavam em si, ligavam-se intimamente a estes ciclos. Mas, como entender racionalmente estes fatos quando se desconhecia completamente o corpo humano? Acreditou-se, então, haver uma força mítica em ação, atuando apenas no corpo feminino, que refletia o poder da Deusa. E por isso, as mulheres passaram a ser reverenciadas. Em louvor à Divindade Feminina, construíram-se templos, não apenas no antigo território europeu – incluindo aí a França e a Espanha- mas, também, nos sítios sagrados ao sul da Inglaterra, para onde o culto foi levado por comerciantes, que viajavam da Espanha para a Bretanha, por volta de 2000 anos A.C. Em algum ponto entre 600 e 500 A.C., os celtas invadiram a Gália e, sob a liderança religiosa dos druidas (conhecedores do carvalho) passaram a celebrar ritos em santuários nas florestas.
    Com o advento da era cristã, tudo mudou. Os adoradores da Deusa foram perseguidos e condenados como pagãos, idólatras e feiticeiros e muitas interpretações errôneas passaram a ser feitas, por total desconhecimento e preconceito à antiga religião. As mulheres, além de serem consideradas impuras e responsabilizadas pelo pecado original, foram queimadas às centenas nas fogueiras da inquisição, sem direito a qualquer tipo de defesa.
    O que precisamos, finalmente, compreender é que o papel social desempenhado pelas mulheres permitiu-lhes exercitar a observação, que engendrou associações e descobertas, estimulando de maneira própria a mente feminina – mais intuitiva – e propiciando o desenvolvimento de uma consciência diversificada que evoluiu por caminhos mentais diferentes da masculina, mais prática e centrada na ação imediata. Conhecer as diferenças que nos complementam, e resgatar o respeito pelo Sagrado Feminino que se deturpou propositadamente, servindo a interesses judaico cristãos nebulosos, não é só questão de eliminar uma injustiça milenar. Trata-se, principalmente, de restabelecer o equilíbrio tão necessário, para que as novas gerações de homens e mulheres caminhem juntos para um futuro de respeito mútuo e cooperação. Meditar sobre estes fatos, é a melhor forma de homenagear a todas as mulheres em seu dia.
    (Ludmila Saharovsky)
    (publicado no jornal Regional News, na coluna Tertius Millenium)

       

      Viagens de antes

      paisagem, detalhe

      Os finais de semana de minha infância eram preenchidos pela expectativa deliciosa e única da aventura que seria, novamente, percorrer o longo caminho até o templo ortodoxo de Vila Alpina, de trem. Eu, linda em meu vestido de domingo, as tranças caprichosamente amarradas por grandes laços de fita de organza arrematadas por ponto de ajur, os sapatos modelo “boneca” em verniz preto (eles deixavam-me doloridas marcas nos calcanhares, que eu, estoicamente, suportava) sentava-me sempre ao lado da enorme janela. Observava, feliz, a manhã passar com suas caleidoscópicas imagens embaladas pela cantilena da máquina nos trilhos, como no poema Trem de Ferro de Manoel Bandeira: Ôo/ foge bicho/ foge povo/ passa ponte/ passa poste/ passa pato/ passa boi/ passa boiada/ passa galho/ de ingazeira/ debruçada/ que vontade/de cantar/agora sim/ café com pão/ agora sim/ café com pão!
      Café com pão…Ah! A fome me torturava, mas, a comunhão… (lembram-se que lá no antigamente a gente só podia comungar em jejum?) Pois então! Ao meu lado crianças deliciavam-se com variadas e coloridas guloseimas enquanto eu engolia em seco, oferecendo aquele pequeno sacrifício ao menino Jesus, enquanto distraia-me com a paisagem. Mais tarde, casada, não trocava por nada a viagem de férias, com meus filhos pequenos, ao Rio de Janeiro, feita naquelas composições cintilantes de aço, formadas por carros-dormitórios duplos, cabine de cima, cabine de baixo, o cheiro de trem inesquecível e tão particular. Nós íamos deitados, juntinhos na cama beliche, o sono chegando mansamente, o céu salpicado de estrelas, a vida sacolejando por dentro de incontáveis túneis e curvas em direção ao mar. Pela manhã, após os malabarismos para escovar os dentes naquele banheiro minúsculo, dando bom dia aos passageiros que já estavam na fila, todos bem dormidos e arrumados, chegávamos aos subúrbios do Rio, sentindo o calor gostoso que nos recebia, junto com meus sogros, na estação. Então, àquele burburinho de malas e de pessoas misturava-se a alegria da chegada: Oô…Vou depressa/ vou correndo/ vou na toda/ que só levo/ pouca gente/ pouca gente/ pouca gente…
      Na Rússia, a viagem entre Moscou e S. Petersburgo de trem, é muito concorrida, chique e sexy.(para os que podem ir de primeira classe!) A locomotiva, que parte às 23 horas é composta por inúmeros vagões e engalanada com brasões de latão que ofuscam a vista, de tão polidos! Os comissários de bordo, todos homens, com seus uniformes azuis escuros e galões dourados vão encaminhando os passageiros para cabines individuais. Assim que você se acomoda, aparece um garçom oferecendo champanhe e um sortido cardápio à escolha do viajante, onde não falta o famoso caviar de beluga. A noite passa rapidamente entre edredons de penas e a neve caindo do lado de fora, deixando a paisagem com jeito de cenário de filme. O sono custa a chegar, pois é tão bom usufruir daquele conforto, daquele astral, a cantiga das rodas sobre os trilhos, a manhã surgindo lentamente! Já a travessia de Moscou ao extremo norte do País dura muitos dias. As pessoas leem, escrevem, dormem, fazem as refeições, conversam nos corredores e nos vagões restaurantes. A travessia é muito mais instigante, agradável e cômoda do que de avião. Aliás, na Europa inteira viaja-se muito de trem. É cômodo. É econômico. Você descansa, cochila, relaxa. Conhece melhor a região, curte a paisagem, faz novos amigos, conversa, medita. São países civilizados, com outros hábitos e costumes. O trem é uma opção muito procurada e utilizada. Diferente daqui, onde antigos vagões viram sucata ou saudosas lembranças de um Brasil que optou pelo transporte rodoviário, tão impiedoso e chato e, pelo transporte aéreo que deixa muito a desejar! Viajar sem poesia, que graça tem?
      Ludmila Saharovsky
      (crônica publicada no Jornal Valeparaibano)

        

        O medo

        Espectros

        O medo é um guia cego.
        Ele nasce de algum ponto obscuro em nosso interior, e quando nos damos conta, já é tarde. Estamos sitiados, reféns de um sentimento que nos acovarda, imobiliza, limita, transmuta. O corpo responde encolhendo-se. O cérebro produz pensamentos de ódio, incompreensão, revolta. E a alma…Ah! A alma sofre enclausurada. Dentro do peito arrebentam-se mil desejos contraditórios. O que seria melhor: O enfrentamento? O recolhimento? O alheamento? A placidez? A barbárie? A indiferença? A fuga?
        Um tremor desliza por nossos nervos e arrepia a pele deixando os sentidos em guarda: De onde virá o inimigo?
        O medo é um sentimento limoso.
        Ele se adere a nós por dentro, por fora, e nos subjuga. Faz com que caminhemos em círculos, com dificuldade de nos movermos, como se estivéssemos com as botas cheias de lama coladas ao chão. Por mais que haja brisa, e que a luz do sol brilhe lá fora, esse lá fora parece um lugar inatingível. O vento não chega até nós, para aplacar o suor do corpo.Tudo se reveste de ameaça: um gesto, uma frase, um ruído, qualquer presença. Um segundo pode fazer toda a diferença entre o viver e o morrer. . Num instante uma rajada atravessa o carro, a porta, a parede e nos pega ali, completamente indefesos, despreparados, aturdidos, modificando radicalmente nossas vidas.
        O medo é um espectro.
        Ele nos persegue e nos alcança em qualquer esconderijo. Invisível ele dissolve nossas convicções e nos acua. Sufoca as esperanças, aniquila o amor próprio. Deixa-nos órfãos, à mercê, do lado negro da força, que não reconhece limites…Que não respeita esconderijos, sejam eles físicos, sejam psicológicos. E, nessa contínua espera da porta que em nós, a qualquer momento pode ser arrombada, o medo vai gerando seu negro lírio de odor nauseativo, que anestesia.
        O medo é um vírus mortal!
        Ele provoca uma dor física insuportável. Dor de bola de fogo descendo pelo esôfago, queimando as entranhas, perfurando as vísceras, abrindo cavernas na carne viva.
        Ah! E o medo também petrifica.Transforma o claro em nós em bruma sólida, em rocha de sal, em marco intransponível. Lágrimas em pedras. Palavras em fósseis. Asas em crostas.
        Enquanto escrevo, a sala enche-se de estilhaços de balas e de vidros. De fogo e cinzas. De gritos e lágrimas. O sangue jorra ao meu redor e mancha o tapete da sala onde repousam meus pés descalços. Vejo as marcas que a morte vai deixando. Um último alento, escurecendo o cristal da vidraça, encobre a tarde. Pássaros negros levantam voos sobre a nuvem de estupor que me envolve a alma, feito arame farpado.
        Feito arame farpado aprisiona-me dentro de mim. Sim, afinal aconteceu a guerra anunciada. A violência rompeu os diques e inundou nossa rua, o jardim, o alpendre, o quarto, a nossa vida. Surpresa? Não! Torpor. A televisão prossegue nos massacrando com as notícias do dia. Imagens de desolação e violência por toda parte. Sirenes, labaredas, rajadas, estampidos, correria. Por toda parte a cauda materializada do terror e a incerteza se sobreviveremos. Mas, amanhã será um novo dia. Contabilizaremos os vivos e os mortos. Ouviremos as mesmas explicações que não explicam nada e as eternas promessas que jamais serão cumpridas. Sairemos às ruas, o medo grudado ao corpo para enfrentarmos mais uma jornada, feito autômatos. Feito robôs. Sobre as nossas cabeças, a Rosa de Hiroshima abrir-se-á novamente em pétalas de angústia e os mortos cobrirão os céus com suas invisíveis mãos pedindo ajuda…
        Ludmila Saharovsky
        (Crônica publicada no Jornal O Valeparaibano)

          

          Máscaras


          Atrás de incontáveis máscaras havia um rosto, ou, poderia dizer-se também, sem medo de errar que, atrás de incontáveis rostos existia uma máscara.
          Dilema! Tanto tempo fundidos – as máscaras e os rostos – que era difícil distinguir qual era qual. Indecifráveis, todos lhe pediam exclusividade. Mas, e para além?
          Para além, o desconhecido! As trevas encorajavam-na a desvendar definitivamente este mistério de sua existência, enquanto a brisa leve dançava nas cortinas: odalisca envolta em transparentes vestes, chamando-a para a vivência seguinte, como nos contos das Mil e uma Noites.
          Ela olhou-se atentamente no espelho, buscando pistas: a pele claríssima, de porcelana. O batom delimitando a boca. E uma lágrima, do olho esquerdo, escorrendo pela face, lenta. Não conseguiu secá-la. Estava impressa. Na máscara? No rosto? Em sua alma? Na reluzente face do cristal?
          Apalpou-se com a ponta dos dedos e estremeceu. Sua face não sentiu o leve toque. Aproximou-se mais. Ficou tão junto que percebeu o hálito recobrir o vidro com textura adamascada. Olhou-se fundo, nos olhos e só então percebeu o rosto. Mas ele também não se movia. Estava absolutamente impassível, impenetrável.
          Lá fora, a vida, as luzes, as pessoas, as paisagens. Ela buscou, aflita, sua voz na distância. Procurou ouvi-la dentro da noite, perdida entre tantas outras, na esperança de saber-se viva, ao menos pelo som. Não obteve um simples eco em resposta. Quanto esforço para revelar-se! Que espaços necessitava de transpor? Qual tipo de persona procurava? Com qual identidade sairia, inaugurando finalmente, em si, o aguardado enredo? Não conseguira, em tantos anos, assimilar a linguagem híbrida das ruas, a catequese da nova cidade, os signos em constante movimento. Era estrangeira naquele meio. Emigrada de longínquas planícies, tentava, em vão, aprender os costumes dessa terra alheia. Buscava por milagres que não aconteciam, por paisagens frias que derretiam abaixo do Equador, por lembranças que não a resgatavam. Foi quando recorreu à primeira máscara: aquela personagem até que lhe caíra bem! Usou-a por algum tempo, criando à sua volta um novo mundo. Mas, imersa numa realidade que também não lhe pertencia, logo sentiu-se pouco à vontade e experimentou a seguinte. Da qual também se cansou. E assim foi vivendo, de salto em salto, de fantasia em fantasia, de porto em porto, na vertigem de ser sempre outra. E, na magia de reinventar-se, acabou perdendo sua verdadeira face. Ah! E como era difícil reencontrá-la! Quem era ela afinal? Desdobrara-se aos poucos entre tantas latitudes, fugira de olhares que a perscrutavam, da constante curiosidade dos passantes, refugiando-se em identidades, outras. Transportara-se em viagens intermináveis em busca de suas raízes, para além do tempo, num mar de sombras e de espectros. Mas hoje, particularmente agora, sentia-se tão cansada! Olhou novamente para o rosto, aquele, por trás das máscaras e resolveu que chegara a hora de assumi-lo. Estendeu as mãos e tocou com infinito carinho cada marca, cada ruga, cada poro até que finalmente, ele se moveu. Olhou para ela, de dentro do sumidouro do espelho e, retirando toda a pele humana, lhe sorriu.
          (Ludmila Saharovsky)

            

            Presentes de Natal


            Este ano, no Natal, resolvi presentear meus netos com algo diferente: um livro.
            Já vejo a interrogação nos olhos de vocês: “E desde quando um livro é presente diferente?”
            Acontece que esses livros são! Eu os criei a partir do universo particular de cada neto e por eles protagonizado.
            Parafraseando Rubem Alves, meu muito amado: “Meu sonho fez amor com as folhas e o livro nasceu.” E foi uma experiência incrível!
            A ideia veio lá de longe, de minha infância. Estávamos recém chegados ao Brasil. Eram tempos muito difíceis de pós guerra, especialmente para imigrantes, como nós.
            Meu avô, para não me deixar sem presente naquele primeiro natal brasileiro, acabou por criar um livro com recortes de fotografias impressas em revistas. De cada revista que encontrava, descartada pela vizinhança, ele aproveitava as imagens mais bonitas. Ele as recortava e colava em folhas, deixando espaços para que, depois, nós interagíssemos, criando nossas próprias histórias. Assim, no primeiro livro que ganhei, começou minha aventura secreta, que não cessou até hoje: Caminhei por jardins da França, castelos da Inglaterra, vivi em casas suntuosas de revistas norte americanas de decoração, corri em parques, naveguei por rios, tive pôneis e carroceis só para mim! Ah…E todas as bonecas dos anúncios! E todas as guloseimas que meus olhos puderam degustar! A cada início de noite, eu e avô deitávamos no tapete do quarto e começávamos nossa aventura daquele dia. Nada, jamais se equiparou ao prazer que este livro me trouxe!
            Pois bem, resgatando essas lembranças, resolvi que repetiria a experiência com meus netos, de forma um pouco modificada, pois, nesses tempos modernos, não há brinquedo que eles não possuam!
            Passei semanas pesquisando e salvando imagens na Internet (Minha revista de fotos virtuais…)Depois, eu as imprimi, adaptando cada desenho a uma historia mágica que os meninos protagonizariam.
            Alecsia ganhou um livro com aventuras em Guararema, onde ela descobriu um unicórnio perdido em meio à mata e, auxiliada pelas labradoras Shiva e Salomé, por trilhas inesperadas, foi em busca de seus pais!
            Para Anna Luisa, que mora em Recife, escrevi “A bolsa mágica de Anninha”, que voa e se transforma ora numa barca submarina, ora num balão e a leva para incríveis aventuras. No fundo do mar, Anna conheceu a Rainha das Sereias, e, e sobrevoando as montanhas do Vale do Paraíba, chegou, finalmente, à casa da vovó!
            Para MIguel, seguiu a historia de uma menino e seu inseparável aviãozinho vermelho que o leva a visitar todos os primos espalhados do Oiapoque ao Chui, e, em cada lugar eles se envolvem em incríveis descobertas!
            Maria Claudia recebeu um livro com o convite trazido pelo bico da gaivota, contendo um mapa para chegar até o Reino do Mar de Dentro, numa ilha secreta, cujo caminho só ela consegue decifrar…
            Não sei ainda, se nesse universo de brinquedos eletrônicos e jogos virtuais, meus livrinhos artesanais conseguirão enfrentar a concorrência, mas, de uma coisa eu tenho certeza:
            Um dia, lá no futuro, eles serão as testemunhas de que em 2012, uma avó que vivia lá no Vale do Paraíba, inventando historias, documentou para seus netos a necessidade de exercitar o sonho e a fantasia para ter uma vida feliz! (Ludmila Saharovsky)

            (Os livros foram feitos em edição limitadíssima, um único exemplar para cada neto, sem valor comercial, por isso usei imagens capturadas na NET para ilustrar as capas. (Ludmila)

              

              Fim do mundo…

              Poetas, seresteiros, namorados correi…
              É chegada a hora de escrever e cantar/ Talvez as derradeiras noites de luar…”

              Profetizam, os videntes de plantão, que nossa terra azul, tal e qual a conhecemos, chegou ao fim. O calendário Maya não mente!
              O que eu já recebi de e-mails com informações, instruções, links, mensagens psicografadas por seres intergalácticos e espíritos de luz, encheria a memoria de vários pendrives.
              Vamos às informações: No próximo dia 21 de dezembro (daqui a dois dias portanto) o sol vomitará labaredas de fogo tão poderosas que afetarão todos os satélites, motores, geradores, lanternas e faróis. A escuridão irá imperar por três dias. Os satélites cairão sobre a terra, aterrando nossos quintais de lixo sideral. Todas as comunicações serão interrompidas e o desespero será total. O conselho é abastecer a dispensa com alimentos não perecíveis, água, muitas velas e fósforos. E esse será apenas o início do tal do apocalipse.
              A par disso, Nibiru, um enorme planeta caprichoso em sua órbita, que cruza os céus a cada 3.600 anos causará com sua passagem, uma inversão de eixos na terra provocando novas acomodações das placas tectônicas e mais ciclones, tsunamis, desmoronamentos. Todas as cidades praianas desaparecerão.
              Noruega, antevendo tudo isso, já se antecipou, construindo um gigantesco silo subterrâneo onde armazenou cerca de 100 milhões de sementes e 120 tipos de arroz que preservarão nosso patrimônio agrícola para a nova civilização que aqui surgir.
              Milionários do mundo inteiro também já asseguraram sua imortalidade construindo luxuosos bunqueres nos quais irão refugiar-se juntamente com a sua fortuna, na tentativa de sobreviver ao Cáos: os novos faraós enterrados vivos! Que homo os encontrará?
              E nós, pobres mortais, homens sem eira nem beira, o que faremos?
              Não sei quanto a vocês, mas eu pretendo sentar-me confortavelmente no sofá de minha sala, junto com meus poetas prediletos, uma bela taça de vinho tinto e aguardar com perfeita tranquilidade que se cumpra o meu destino humano, levando como única bagagem minha alma bem lavada…e mais nada!
              Nos vemos antes do Natal, com certeza!
              Beijos!
              (Ludmila)

                

                Porque é dezembro

                O mês de dezembro está aí, a mexer com todas as emoções.
                As cidades vestem-se de luzes, as lojas transbordam de pessoas. Uns amam dezembro, outros odeiam. Cada qual, certamente, possui seus motivos e razões.
                Eu ainda não me decidi. Sei apenas que dezembro é um mês diferente. Tenho onze anos e toda a cidade me pertence. Sem pai nem mãe, perambulo pelas ruas, como se fizesse parte de uma realidade virtual. Tenho tudo e nada, ao mesmo tempo. É como se eu protagonizasse um filme, sem fazer parte do elenco. Eu não estou na paisagem. Eu sou a paisagem. Sou como um poste, um paralelepípedo, um orelhão, um banco de jardim, uma árvore, um cão vadio. As pessoas, de tanto me verem já nem me enxergam. Passam por mim, os olhos perscrutando vitrines, ofertas, preços. Meus olhos, não. Eles, há muito, separaram-se de meu corpo, com suas vontades e seus desejos. Aprendi cedo que vitrine é o lugar onde ficam as coisas que jamais terei.
                Acostumei-me a olhar sem desejar, observar o mundo sem frustrações nem medos. Nada tenho a perder pois nada de meu possuo. Democraticamente, onde vivo, tudo é nosso, e nada é nosso. Às vezes, penso que sou apenas um par de olhos sem corpo, pousados sobre um cotidiano no qual não me incluo.
                Faço parte dos excluídos, e para mim, a vida que levo é a normal. Também, jamais tive outra…Sem parâmetros, as escolhas ficam bem mais fáceis.
                Apanho um naco de pão aqui, bebo um resto de suco ali, e assim vou mantendo minha carne grudada aos ossos. Apesar da idade, já tenho minha própria rotina. Durmo sob qualquer marquise. Conheço os bueiros mais seguros, os mendigos mais fraternos, os veados que não molestam crianças. Sei a hora das rondas e o momento exato em que o lixo comível vai para defronte as lanchonetes. Deixo minha latinha sempre no mesmo buraco do muro da padaria, onde o portuga, meu amigo, deposita restos de empadas e, vez por outra, um naco de presunto. Aprendi a sobreviver da economia informal: aproveito cada migalha; cada trapo me serve de vestimenta, cada saco de cobertor, cada cartolina de telhado. Vivencio meu dia-a-dia, com quase nada de recursos. Sou o administrador dos desperdícios alheios.
                Mas em dezembro…ah, em dezembro as coisas mudam. É como se à minha frente se abrisse um grande túnel de luz, e essa luz me envolvesse e me tornasse mais e mais visível aos olhos dos passantes.
                Talvez seja porque em dezembro, as pessoas voltem para suas infâncias e tornem-se mais puras, mais vulneráveis e fraternas; pensem mais nos seus e nos outros, aproximem-se mais de Deus. Assim, em dezembro, eu me torno este outro. Um outro que precisa ser visto, que pode ser amparado, cuidado, assumido, presenteado.
                Um outro que, de repente, com sua presença pouco asséptica, incomoda a alegria do Natal, estraga o prazer da festa.Um outro que, momentaneamente, desperta nas consciências, o pressentimento de que algo precisa ser modificado nesta cidade de tantos excluídos. Um outro que lembra que, apesar dos presentes, das ruas iluminadas, das lojas repletas, existe sua presença inquietante demonstrando o quanto a pobreza ainda faz parte do contexto. Prova máxima da falência de qualquer espírito cristão. Feliz Natal? Pois é…Feliz Natal!
                (Ludmila Saharovsky)
                crônica publicada no jornal Diário de Jacareí

                  

                  O prazer de escrever

                  Há algum tempo atrás eu fui convidada para conversar com um grupo de alunos do curso primário , numa escola pública de Jacareí, sobre a atividade de cronista. Surpreendi-me com o pequeno auditório repleto de crianças ativas e barulhentas, como, aliás, devem ser todas elas, aguardando-me com caderno e lápis na mão.
                  Podem, por favor, guardar seu material. Não estou aqui para dar-lhes aula, apenas para conversar, eu logo fui dizendo. Ah! Alegria geral!
                  Apresentei-me: Sou Ludmila, escrevo há algum tempo e vim falar-lhes sobre o prazer que este ofício me proporciona.
                  E sobre o que eu escrevo? Sobre qualquer coisa que me passe pela cabeça: sobre o dia, as pessoas que conheço ou gostaria de ter conhecido, sobre a minha cidade, sobre a vida com suas alegrias,tristezas e descobertas. Essa maneira de escrever chama-se crônica, palavra que se origina de outra, grega, e que significa tempo.
                  Escrever crônicas, portanto, é escrever sobre o seu tempo.

                  “Ah, eu acho bonito escrever, mas é difícil!” ponderou uma garotinha.
                  “E eu acho muito chato fazer redação, não sei como é que tem gente que gosta,” replicou um menino de óculos sentado na última fileira.
                  Realmente eu também acho muito chato a gente fazer, por exemplo, descrição à vista de uma figura, mas, e se começarmos a brincar com as idéias? Inventar, criar e descrever fugindo completamente dos pensamentos sempre iguais que surgem em nossa cabeça?
                  “Como?” gritaram as crianças em uníssono.
                  Vamos fazer uma brincadeira com as idéias e as palavras. Vejam, eu trouxe para vocês esse lindo poster de uma jabuticabeira.
                  Em vez de escrever, vejo uma árvore e encerrar o assunto, porque à primeira vista todas parecem iguais com seus troncos, raízes e folhas, que tal irmos além? Que tal imaginarmos que aquela árvore é a nossa árvore, como se fosse um amigo, que ela respira, que gosta do lugar no qual vive, que sente dor, que gosta de tomar banho de chuva e receber os passarinhos e aos mil e um bichinhos que vivem em suas folhas.

                  “Sabe, tia, na árvore da casa da minha avó tem um balanço de corda e um pneu na ponta, que eu adoro!”
                  “Outro dia a professora levou a gente no Jardim “Botâmico” e eu vi um esquilo que morava na árvore.”
                  “Muitos esquilos, corrigiu o amigo, Muitos, pequenininhos que pulavam de galho em galho.”
                  “E lá em casa tem uma jabuticabeira, mais bonita que essa sua, e minha mãe faz geleia”.
                  “A minha mãe faz geléia de amora. Eu adoro!”
                  “E na árvore da minha rua caiu um baita raio que abriu a árvore em dois e o galho amassou o carro que estava em baixo!”
                  “Sabe tia, a gente sempre vai lá na roça de minha avó e tem uma árvore enoooooorme na beira de um lago, que a gente mergulha dela!”
                  A criançada embarcou na ideia, e os relatos foram surgindo. Assim, conversando e criando, o tempo passou e nem nos demos conta. Claro que eles quiseram saber tudo sobre mim também: onde eu nasci, quantos anos tinha, se minha casa era grande e com árvores, e até como era feito um jornal.
                  Uma pergunta, no entanto, deixou-me surpresa e perplexa. Um garotinho tímido, que durante todo o tempo ficou me perscrutando sem nada dizer, finalmente criou coragem e levantou o braço: “Tia, e se a árvore imaginar coisas sobre a gente, como é que eu fico sabendo”?
                  Crianças,crianças… Tive vontade de carregá-las todas para minha casa, só para pensar e aprender com suas perguntas, algumas, como esta, difíceis de responder!
                  (Ludmila Saharovsky)
                  Crônica publicada no Jornal Valeparaibano

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