Estrelas líquidas

Noite estrelada Vincent Van GoghDevaneios

Há noites em que as estrelas ficam líquidas no céu. Então, elas pingam sua leveza luminosa dentro de nossas retinas. Nesses momentos a gente clareia a alma e a solta da gaiola de ossos para que passeie sobre a terra: esfera intercalada por sombra e luz, gritos e silêncios, perdão e culpa, esperança e medo, dor e alegria. Ela, então, abdica de todas as urgências, interliga os opostos e retorna plena, flutuando feito pássaro noturno em busca do ninho, imortal, na falácia do tempo… (Ludmila)

Imagem: starry night by alex ruiz, em homenagem a Vincent Van Gogh

    

    A eternidade, agora!

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    Comentam os estudiosos que existem outros mundos além do nosso. E eu creio piamente nisso. E, somos nós quem os criamos. Existe o mundo da música, da poesia, da imaginação. O que seria de nossa vida sem esses refúgios? Lugares por onde transitam personagens que pensam, sentem, criam, amam, odeiam, sofrem e se regozijam. Refletirão a nossa essência, como dizem que refletimos a essência da divindade? Deste mundo que habitamos, pouco há para se descobrir e modificar. Comportamentos, emoções, crenças, parece que se solidificaram no imutável. Quem sabe, nestes outros mundos, de nossos anseios, possamos criar uma realidade melhor? Não corrompida? Ou tudo não passa de uma fantasia, uma farsa, inclusive esta nossa vida que prezamos tanto? (Ludmila)

      

      Sonho

      3angkorwatpaisagensimpressionantesTemplo budista em Angkor Wat Camboja

      E eis que surge o templo dentro do tempo
      que orbita no silêncio da noite adamascada.
      Deuses e demônios o povoam.
      Um anjo se fragmenta nas alturas:
      um murmúrio de seda se desprende de suas asas
      e pousa em meu plexo desarmado.
      O tempo exala mistérios que o templo absorve
      com suas guelras de pedra e musgo.
      Um soluço desprende-se de mim, estrangulado,
      Enquanto o sono me acolhe, no exílio.
      (Ludmila)

        

        Oásis

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        Há muito associei minhas raízes às pedras que não são ansiosas nem buscam significados lógicos para coisas e fatos. Mas por compartilharmos do mesmo horizonte, eu necessito, assim como elas, saber também das coisas etéreas e celestes. Então, com pedras em meus alicerces, mulher sólida, terrena e antiga eu caminho em tua direção, com estrelas nos olhos, com nuvens gordas nos braços, para aconchegar-te, para cobrir-te com as suaves cores do arco íris e para pedir-te que nunca te afastes de mim, pois que, em segredo que revelo apenas para ti, conto que possuo uma nascente em mim, de onde brota uma água sempre cristalina que irá mitigar todas as tuas sedes: do corpo e da alma. Basta que me sinalizes: Estou indo…E eu, te acolherei, as pedras brutas transformadas em diamantes: Vem!
        (Ludmila Saharovsky)
        (imagem de Jerry Uelsmann)

          

          Doce lar…

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          Sonhei. Era uma casa embrionária. E era nossa.
          Nela, não divisei sala nem quartos, mas pressenti conversas longas no sofá frente à janela,
          que dava vistas à hortênsias e ciprestes que alguém, antes de nós, tivera o capricho de plantar.
          Inexistia, ainda, o cotidiano pó sobre o verniz dos móveis não adquiridos,
          nem marcas digitais pousadas em translúcidas vidraças,
          nas porcelanas claras, na fragilidade tênue dos cristais.
          Tampouco a lenha para alimentar o fogo fora recolhida.
          Mas, no futuro, à noite, eu vi a ampla porta de madeira fechar o mundo
          e os sons lá fora, enquanto o silêncio das coisas, tantas,
          reverberava dentro de nós.
          E eu não tentava transpor os limites que você instalara.
          Antes, eu respeitava seu campo, espaço e corpo.
          E instituía uma certa magia, um mistério que ficava pairando
          acima das relações humanas, que não se desintegrava na intimidade,
          no dia a dia, nas rotinas sufocantes, nesta mecânica corrosiva do vir a ser.
          Não. O destino não nos alcançava com seu dedo sempre em riste,
          indicando itinerários como já fez e continua fazendo, com tantos outros.
          Por isso a casa continuava sempre inconclusa.
          Se concluída, certamente, tornar-nos-íamos íntimos demais de sua posse,
          e o encantamento poderia se perder.
          Assim, a cada noite, agora, exercito-me em ouvir o degrau rangendo,
          precedendo seus passos que adivinho, enquanto trato de demarcar,
          na memória, a sólida fronteira:
          A realidade da casa: posse do mundo
          O seu anelo: posse minha e sua!
          Ludmila
          fotografia de Jerry Uelsmann

              

            Devaneios


            É incrível a sensação da grama sob meus pés descalços. Usufruo avidamente deste contato úmido penetrando por meus poros, entrededos, calcanhares.
            E eu vou. Caminho. Ando. Passeio. Perambulo lentamente pelo tapete verde que se estende sob meus passos, sem roteiros nem metas de chegada. Não piso forte, apenas roço o gramado que sequer se amassa.
            O vento morno acaricia-me a pele enquanto eu prossigo. Com doçura entrego-me ao sabor da calma travessia. Não sigo passo-a-passo. Eu flutuo, voejo, quase esvoaço no relvado. Ali, a árvore frondosa, a sombra farta convidando-me ao repouso. Eu deito e desfruto do silêncio ao meu redor. E eu mesma sou o silêncio e a árvore e a sombra. Eu sou o tronco fincado sobre a terra. E, a fome e a sede saciadas, desdobro-me ao sol. E eis-me pedra. Pesada, sólida, imóvel eu existo impassível. Impávida, exata eu permaneço firme: Rocha, rochedo, penhasco, fraga. Sou força bruta e me basto, incompreensível enigma do menir.Meus olhos invisíveis perscrutam oceanos, e me deixo ser polida, lascada, triturada. E eis-me espuma de cascata, delicada e branca. Eu fervo, borbulho e jorro. Evaporo. Sou chuva, rio, oceano, lago. Sou rega, sereno, aguaceiro. Sou onda, afluente, maré alta, turbilhão.Sou lágrima, suor, saliva, água. E eis-me pássaro, pulando sobre o peixe. E eis-me peixe, abocanhando a lavra. E eis-me vento, recolhendo gorjeios, balidos, risos e gemidos.Mimetizei-me em tronco e me tornei floresta. Penetrei na pedra e fiz-me fortaleza.Quedei-me na água e rolei cachoeira. Pisei na terra fértil e floresci.
            E o vento soprou forte minhas sementes e eu renasci.
            (Ludmila Saharovsky)

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