Exercício para materializar lembranças

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“A lembrança pura não tem data. Tem uma estação” ensinou-nos Bachelard, e ele estava certo!
“Aquilo que a memória amou fica eterno” disse Adélia Prado. Mas, como alcançar esse território da eternidade e trazê-lo para o presente?
Penso que recordar é uma outra forma de habitar o tempo, e o veículo que nos leva a ele é a saudade. Saudade de pessoas que foram importantes em nossa vida. Saudade de lugares, de cheiros, gostos, do timbre de uma voz. Saudade de uma determinada música que se alojou em nossa alma e não se desprende. Saudade de emoções, da infância, da juventude que passou voando! Um instante, um inspirar e expirar, apenas, e já se fez passado.
“Minha alma é um bolso onde guardo minhas memórias vivas”, escreveu Rubem Alves. Pois a minha, lhes digo: é um trem carregado de reminiscências. Um trem daqueles em que os vagões se perdem na contagem, de tantos que são e, ao mesmo tempo, ele não passa de um vislumbre! Ele não passa de uma estrela cadente cortando os céus, como na música de Raul Seixas: “Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem/Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon/ Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem.” Olho o trem e não consigo toma-lo rumo ao passado! Não consigo aprisionar, materializar, sequer organizar minhas memórias, quanto mais torna-las vivas! Elas vão e vem ao seu bel prazer, e quando penso que, enfim, eu consegui aprisionar alguma, aí é que ela me escapa!
Com o decorrer do tempo fui aprendendo que, para habitar o território das lembranças é preciso tornar-se mestre no ofício da imaterialidade. Se pensamento é energia pura, as lembranças ficam ali, no vácuo. Elas não são os pontos luminosos. Não! Elas são a sua sombra, por isso é tão complicado retê-las. Por isso lembranças não tem datas, apenas estações. Apenas emoções. E eu pratico. Fecho meus olhos e me deixo flutuar nessas estações, como quem não quer nada… Então, minha alma lança o anzol no mar da memória, e, na maioria das vezes, traz a pesada ausência enroscada nas algas do tempo, em seixos, em calhaus, em musgo. Até livrar-me disso tudo, a ausência já escapou, não teve tempo de virar presença, mas, algo ficou no ar, feito um sopro ecoando no silêncio, que me estremece, me arrepia, roça meu íntimo, suavemente, e se esvai. É assim, feito o farfalhar da seda que não toco, mas adivinho, leve! Ah! A insustentável leveza das recordações! Creio que é por isso que escrevo tanto! As palavras tem o poder, tem a magia de materializar lembranças no papel. Palavras são feito pedras que atiramos no lago e que vão formando aqueles círculos visíveis, que vão se abrindo mais e mais e se permitem ser tocados, quando a pedra que os provocou, já nem tem mais importância alguma.
Todo esse texto, essas reflexões, são para trazer, você, minha mãe, à essa estação que sua ausência criou em mim, e que as lembranças jamais preenchem, e que as saudades jamais saciam, e a eternidade não consegue aproximar…
Ludmila

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