Filigranas

Arte de Jarek Kubicki
Hoje me choquei contra a realidade do céu azul
e a palavra que queria dizer-te, espatifou-se em minha boca:
Virou suspiro, virou soluço, virou saliva, virou susto!
De repente, o eixo de marfim que me mantinha centrada neste mundo, equilibrada, equidistante, tornou-se uma espiral de sonhos a atravessar-me, a dividir-me ao meio: Metade mulher, metade filigrana ornando um camafeu onde vejo a estampa de meu próprio rosto.
Sou fêmea na aurora, preenchida por seixos e presságios, deusas e demônios, pardais, andorinhas, adágios de violoncelos e flautas.
Consegues perceber a metamorfose?
Será que mesmo assim, poderás identificar-me?
Sentir meu cheiro e gosto?
Perceber esse alarido de pássaros que me atravessa a alma
e se desprende de mim, feito choro de violoncelo e cuíca em contraponto?
Ah! meu coração está repleto de candeias acesas, tochas, archotes, velas aguardando um rito nobre que o ressuscite, que o redima.
Estou assim, indefesa no universo: a vida escorrendo em mim, feito areia na ampulheta. Escorrendo, escorrendo, mais um grão…mais um,
enquanto vou me consumindo nessa miragem, abismada em profundezas infinitas.
Ilusões, ruídos de tambores distantes enviando mensagens cifradas:
Para que? Para quem? Para mim? Para este outro que em mim se esconde?
Mas afinal, de quem é este destino que se tece assim, meio que à revelia, entre as cordilheiras?
Ludmila Saharovsky com arte de Jareck Kubicki

     

    A menina e a boneca

    boneca2
    A menina ganhou a boneca tão desejada. Presente de aniversário. Certa tarde, esqueceu-se dela na casinha armada entre os canteiros do jardim. Manhã seguinte, a boneca, coberta pela geada, perdeu a voz e o azul dos olhos de vidro enlagrimou-se. Choram, a menina e a boneca, no jardim, inconsoláveis. Na boneca, dá-se um jeito. Na dor da menina, não! (Ludmila)

         

      Á noite, encontrei-me com o poema.

      silêncio
      Á noite encontrei-me com o poema.
      Ele dormia intocado no silêncio de minha língua
      com suas palavras permeadas de metáforas,
      antes de ser verbo e se fazer carne de minha carne
      e habitar as entrelinhas da matéria.
      Á noite encontrei-me com o poema. e antes que ele despertasse
      e preenchesse de letras rebuscadas a minha boca, preenchesse de
      água e fogo minhas entranhas e saísse feito dardo sonoro iludindo meus sentidos e dando vida a abstratos pensamentos, eu o sorvi, transformei-o em sopro, em alento, em suspiro, em saliva e o protegi de mim! Então a noite encheu-se de estrelas, a poesia surgiu das trevas e alimentou-se da calmaria do tempo, e expandiu-se livre, em seu calado e insondável mistério e habitou entre nós. (Ludmila)

        

        O idioma dos sonhos e das nuvens

        estrelas
        Este idioma com que falo às nuvens
        enquanto o sono me espreita e confunde as imagens com que colonizo os sonhos
        é língua estrangeira de reduzido uso.
        A ela respondem as ondas e os rochedos
        e algum pássaro noturno, se o chamo pelo primitivo nome.
        Então, abrem-se as portas do reino,
        o sono vence a batalha e me leva ao seu domínio:
        lá onde as estrelas surgem,
        lá onde os poemas nascem,
        lá onde o silêncio reina soberano,
        lá onde a vida forja novas contendas
        e me semeia de abismos.
        (Ludmila)