Fogo Fátuo

Terrena,tenra,terna
No solo fértil de teu corpo
Me debruço
E me entrego
Ao impulso cúmplice,
À fúria desse jogo
Que nos transforma
Em animais vorazes.
E o amor brota entre gravetos,
Pedras, seixos, prados
Enquanto o fogo
Nos consome as entranhas
E sem palavras
Queima!

(Ludmila Saharovsky do livro Te Sei)

        

    Útero de deus

    Eu escrevi esses poemas há muitos anos, na década de oitenta, quando minha mãe partiu. No início, o livro que os contem chamava-se Anatomia da Morte, e era dividido em três tempos: Tempo do medo, da contemplação e da entrega. E o tempo passou e esses tres períodos fundiram-se e confundiram-se em mim. Então, reescrevi a maioria dos poemas e rebatizei o livro como No útero de deus. Para mim, esse título metafórico representa a exata percepção que eu tenho da divindade: um pai/mãe que criou de si toda a vida, e que, amorosamente, aguarda a volta de cada filho pródigo ao lar.
    Quando esse trabalho ainda era Anatomia da Morte, foi estudado e representado por um grupo de jovens que faziam teatro de bairro em SJCampos, acompanhados por Dirce Araújo. Depois, ele foi usado como tema para a dissertação de graduação na FASC Faculdades Santa Cecília, de Pindamonhangaba, por um integrante desse antigo grupo, Roberval Rodolfo. Roberval tornou-se ator e diretor. Posteriormente, em 2004, sob a coordenação do prof. Marcelo Dênny de Toledo Leite, prof. do departamento de Artes Cênicas da ECA/USP, Roberval o transformou em peça de dramaturgia. No útero de deus foi apresentado no Paço das Artes, dentro da Cidade Universitária em S. Paulo, e também em algumas cidades do Vale do Paraíba. O livro prossegue inédito. Transcrevo para vocês, alguns poemas dos quais gosto muito. São cânticos numerados, sem títulos.

    I
    Teu hálito
    Permeia-me
    Enquanto me esvazio
    E celebro pactos
    De dor e esquecimento
    Teu útero
    Expele-me no mundo
    E eu choro
    Na noite densa
    Essa ausência
    Que não nomeei,
    Ainda!

    II
    Recomeço
    Teorema de carne e sangue
    Conforme ordenaste
    Multiplico-me
    E salgo a terra
    Fora de ti
    Encontro apenas
    Lembranças fugidias
    Repletas de silêncios
    E o palpitar de teu nome
    Que não ouso pronunciar
    Sozinha

    VI
    A morte vai seguindo
    E no caminho
    Não há sequer um visgo
    De seu rastro
    Apenas
    Meu ser latente
    Arquetipado na memória
    É sua rota
    E minha trajetória

    X
    Além do opaco
    A treva
    E em mim
    A mais complexa
    Impenetrável rota
    A noite oculta.
    No mar revolto
    A morte: ilha de breu
    Cauda de horror
    Corpo à deriva
    A morte:
    Último brilho
    Sobre a alma altiva.

    XVII
    A ânsia do Eterno
    Trespassa-me qual flecha
    Relâmpago incontido
    Iluminando trevas
    Mas o ventre da noite
    Absorve-me úmido
    Matriz que molda
    O esquecimento
    Da luz?
    Apenas um pulsar
    Imperceptível…

    XX
    Feito concha
    Que contem
    O eco das marinhas
    Guardo-os em mim
    Pai, Mãe, Filho,
    Santo sopro de vida
    E com essa singular
    Arquitetura de ossos
    Faço o seu ninho.

    XXIII
    Quero que me cubras
    De terra fresca e fértil
    Então,flores nascerão de mim
    Feito palavras
    E transmutada
    Em frutos e sementes
    Renascerei em ti
    Vestida de primavera.

    (Ludmila Saharovsky)

    Poesia inspira espetáculo
    A peça ‘Utero de Deus’, baseada na obra de Ludmila Saharovsky, será apresentada hoje no CET, em S. José
    São José dos Campos
    A Cia do Trailler, de São José, apresenta hoje, às 19h, no Centro de Estudos Teatrais (CET) a peça “Útero de Deus” baseada na obra poética de Ludmila Saharovsky. A apresentação faz parte da programação da Semana do Teatro organizada pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo.

    O espetáculo “Útero de Deus” é a única peça do evento que traz o gênero performático. O estilo surgiu nos anos 70 para romper com a arte tradicional. O gênero é marcado por ações espontâneas que incorporam técnicas do teatro, da mímica, da dança, da fotografia, da música e do cinema.

    Segundo o ator André Ravasco, quem for à apresentação deve se preparar para viver sensações diferentes. “Este é um espetáculo interativo, não tem o formato tradicional. O público faz parte integral da encenação. Nós trabalhamos muito os sentidos e as sensações”.

    O espetáculo foi desenvolvido a partir da apropriação da poesia com a redação para cena. O texto é extraído do livro que leva o nome da peça, que traz a morte como tema central. “Tudo está pautado nos quatro elementos ar, terra, água e fogo”, disse o ator.

    Para reforçar a idéia destes elementos, a peça conta com quatro espaços diferentes, onde o público e os atores transitam. Ao todo são seis atores em cena que usam da linguagem aguçada nos sentidos e as performances cênicas para atrair a atenção das pessoas para celebrar esta passagem inevitável ao ser humano: a morte.

    O grupo está com a peça em cartaz há dois anos. Segundo Ravasco, mesmo com o tempo de estrada o espetáculo não é fechado e sofre mutações no decorrer dos anos. “Estamos em constantes transformações”, afirmou. Em novembro do ano passado o grupo realizou dez apresentações da peça no Festival de Teatro de Pindamonhangaba.

    (Publicado no Jornal Valeparaibano em 2005)