Nem sempre me inspiram as flores e as estrelas que invadem minhas retinas e as povoam de luz e de esperança.
Também a loucura me inspira. Essa que incendeia a rotina dos dias e esgarça a certeza das coisas.
Nascem meus versos, então, cheios de sal e cinzas, como agora.
Digo: Vem! Senta-te à mesa e devoremos o desencanto das horas mortas.
Vem! Desfruta dessa tristeza que me transforma em pedra, cratera, abismo.
Vem! Te junta a mim e vamos sangrar as veias da poesia, até que os peixes cintilem na água, como as estrelas no céu. (Ludmila)
Arte do fotógrafo russo Stanislav Aristov
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Mia Couto, no dia do poeta
O sentido normal das palavras
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
(Manoel de Barros, O Guardador de Águas, 1989)
Estrela
Amigos
A terceira margem do rio
Á noite, encontrei-me com o poema.
Á noite encontrei-me com o poema.
Ele dormia intocado no silêncio de minha língua
com suas palavras permeadas de metáforas,
antes de ser verbo e se fazer carne de minha carne
e habitar as entrelinhas da matéria.
Á noite encontrei-me com o poema. e antes que ele despertasse
e preenchesse de letras rebuscadas a minha boca, preenchesse de
água e fogo minhas entranhas e saísse feito dardo sonoro iludindo meus sentidos e dando vida a abstratos pensamentos, eu o sorvi, transformei-o em sopro, em alento, em suspiro, em saliva e o protegi de mim! Então a noite encheu-se de estrelas, a poesia surgiu das trevas e alimentou-se da calmaria do tempo, e expandiu-se livre, em seu calado e insondável mistério e habitou entre nós. (Ludmila)
O idioma dos sonhos e das nuvens
Este idioma com que falo às nuvens
enquanto o sono me espreita e confunde as imagens com que colonizo os sonhos
é língua estrangeira de reduzido uso.
A ela respondem as ondas e os rochedos
e algum pássaro noturno, se o chamo pelo primitivo nome.
Então, abrem-se as portas do reino,
o sono vence a batalha e me leva ao seu domínio:
lá onde as estrelas surgem,
lá onde os poemas nascem,
lá onde o silêncio reina soberano,
lá onde a vida forja novas contendas
e me semeia de abismos.
(Ludmila)