Jacareí: Tempo e Memória

O novo Blog do livro está nascendo...

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Livros de pesquisa de historiadores, na maioria, jacareienses

Livros de pesquisa de historiadores, na maioria, jacareienses

Digitalizando documentos e depoimentos

Digitalizando documentos e depoimentos

Só quem tem por ofício a escrita, sabe a alegria que se sente, ao ver um livro tomando forma.
É uma gestação. De ideias, certo, mas creio que todos nascemos de uma ideia que se fez, primeiramente, verbo.
Reler livros de historiadores que nos iluminam o caminho das descobertas. Rever fotos de lugares que já não existem. Entrar nas memórias de pessoas que já se foram. Descobrir detalhes, sentimento, emoções, uma outra visão da história. E materializar, tudo isso, de novo, no papel, não tem preço.
Sou uma privilegiada e agradeço, diariamente, pela oportunidade de devolver à minha cidade, um pouco das lembranças que vão se esmaecendo na memória coletiva. Jacareí: Tempo e memória é um livro escrito a muitas mãos. É uma colcha de retalhos muito pessoais, que eu vou, apenas, arrematando.

Abaixo, trechos de recordações que comporão o livro:

“Jacareí, quando eu nasci, era assim. Calma, quieta, onde todos formavam uma só família, e onde, quando saíamos em grupo, brincávamos de enumerar um por um, os moradores daquela rua, daquelas casas queridas. O meu pai tinha uma farmácia, e neste terreno de sua casa, lá no fundo do quintal, está enterrado meu umbigo”.(Jarbas Porto de Mattos)

“Amigos, eu, como professor, quero deixar gravada aqui minha homenagem ao inesquecível Cônego José Bento, outra figura esquecida. Ele que foi um educador exemplar, criador do Colégio São Miguel, nas terras onde hoje está a fazenda Coleginho, e que depois de sua morte foi transferido para o Avareí. Hoje, por causa dele, temos a nossa Escola Profissional” (Décio Moreira)

“Eu me lembro muito bem de Dona Dionísia Zicarelli. Ela estudou piano com maestro Laudelino de Moraes. Ela, O Laudelino e dona Adelaide, sua esposa, fundaram a Escola de Música Santa Cecília. A Dionísia também tocou muito piano nas seções de cinema do Perretti e do Albano Máximo. Tinha gente que ia no cinema só para ouvir ela tocar. Acho que foi na década de 40 que ela criou a Orquestra Sinfônica de Jacareí. O Verano Câmara tocava violino. O Antonio Piovesan também. Era uma beleza a apresentação deles lá no Trianon. Ah, lembrei! A Noêmia Loureiro tocava piano…” (Odilon de Siqueira)

“Lá onde hoje é a estação de captação de água do SAAE, chamava-se “Bairro do Toco”.( hoje Jardim Liberdade) O rio ali, fazia uma ilha, bem no pasto do Coronel Antonio Ramos, onde tinha uma árvore enorme. Toda a molecada nadava no rio, naquele lugar, porque lá dava pé. A gente desconhecia o perigo! Precioso tempo…” (Domingos Válio)

“Lembro-me ainda, muito bem, de quando eu tinha 12 pra 13 anos, das brigas de zona com zona, que eram um horror. Nós fazíamos guerra com o pessoal dos outros bairros. Tinha a turma do Bairro do Riachuelo, da Matriz, do Largo do Rosário, da Estação e da Ponte. Então era um tal de uma turma desafiar outra, que não tinha jeito.Havia uma arvore que dava uma frutinha parecida com azeitona, que agente usava nos estilingues. Nós enchíamos os bolsos dessas frutinhas e partíamos pra briga. Usávamos também taquaras, paus e pedras. Nós marcávamos encontro para as brigas e a coisa ficava preta.” (Ubirajara Mercadante Loureiro, Seu Biroca)

“Naquela época usava-se encomendar muita coroa de biscuit para enviar aos defuntos. Elas eram compradas de fora, de viajantes que traziam as amostras e a gente encomendava. Elas iam enfeitadas com fitas roxas, as letras douradas para escrever e eu ajudava o titio a separar as letras para escrever as mensagens.
Ah! E também não se usava roupa comum para enterrar os defuntos. Precisava ser tudo novo. As senhoras eram enterradas com mortalhas. Compravam os panos na loja de vovô. Fazia-se uma camisola de baixo conforme a cor que se queria. Azul se fosse vestida de Nossa Senhora, por exemplo. Fazia-se aquele manto comprido que não podia ser costurado à máquina. Tinha que ser na mão. Eu ajudei a costurar muitos. Os homens iam enterrados de terno mesmo.” (Rafaela Mercadante)

E minha colcha de retalhos preciosos, segue… (Ludmila Saharovsky)

Ponte Preta

Ponte Preta

Banco do Vale do Paraiba

Banco do Vale do Paraiba

     

    José Menino

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    José Menino – Uma pria perdida na infância

    Filha de imigrantes, com parcos recursos para grandes viagens de lazer, férias para mim eram o acontecimento do ano. Passar uma semana na praia, Deus do Céu, como era bom!
    Meus pais acreditavam que banho de mar possuía poderes terapêuticos e o sol ajudava a fixar o cálcio nos ossos, potencializando o efeito do óleo de fígado de bacalhau que eu engolia sob protestos, diariamente, tapando o nariz! Assim, mal despontava janeiro, passagens compradas antecipadamente, lá íamos nós até a Praça da Sé, embarcar em outro ônibus que nos levava até Santos.
    Creio que nunca fui tão feliz como naquelas temporadas!
    Percorrer a Serra do Mar, a estrada cheia de curvas, maravilhando-me com a paisagem, o nariz grudado à janela, vendo os anúncios passarem por mim, flutuando nas montanhas, era uma emoção inenarrável.
    Tudo era mágico: a neblina, os precipícios, as altas pontes, os túneis, os automóveis que paravam na subida da serra com o motor “fervendo”, os ouvidos tamponados pela pressão. E depois o cheiro: Aquele odor ardido da Usina de Cubatão, cuspindo longas labaredas de fogo pela alta chaminé, anunciando que, finalmente, o mar estava próximo.
    Nós sempre nos hospedávamos numa modesta pousada, de frente à Praia do José Menino. Tudo, a partir de então entrava num ritmo diferente: a rotina, o cenário, a comida, as pessoas, mas, sobretudo, os sentimentos. A felicidade podia ser tocada e o era. Ela deixava em mim marcas físicas: arrepios, o riso que não desgrudava da boca e uma certa angústia em ver que não podia interferir na passagem do tempo e fazer de conta que os dias de verão nunca terminariam!
    O pai e a mãe, descontraídos, vestiam-me com roupas novas e íamos passear na orla. Tirávamos os sapatos e deixávamos que as ondas se quebrassem sob nossos pés descalços, saboreando picolés de coco e chocolate, meus predileto! E havia a lua, imensa, refletida na água! Pela manhã, bem cedo, o perfume do óleo de bronzear já enchia o corredor, saindo de todos os quartos. Nas mesinhas do refeitório, bananas, suco de laranja, café ralinho, pão e as bolinhas geladas de manteiga eram um verdadeiro manjar dos deuses! Depois, o chapéu de palha, os tamancos de solado de madeira, óculos “gatinho” e a obrigatória saída de banho confeccionada em algodão branco e felpudo eram acessórios que não podiam faltar. Ah! e havia também a boia preta, aquela velha câmara de pneu, gorda de ar, que o dono da pensão nos emprestava para brincar nas ondas.
    Os guarda-sóis começavam a surgir, mas eram poucos, assim como as esteiras feitas de palha; mas havia as sombras de árvores disputadas por brancas mães e avós, apertadas em seus maiôs de lastex e cercadas por crianças barulhentas e felizes como eu! Poucas horas depois, e o sol já ardia na pele, assim, com as bochechas afogueadas, nariz lambuzado de pasta d’água, cabelos endurecidos pelo sal das ondas e o fundilho do maiô cheio de areia compactada, eu voltava à pensão, rezando para que não houvesse fila aguardando a vez de entrar debaixo da ducha comunitária, instalada no corredor. Minha pele ardia demais sob a mistura de óleo, sal e areia!
    Após o almoço de salada, arroz com feijão, macarrão e frango geralmente ensopado, a sesta era obrigatória. O dia, dividido em dois, durava o dobro, pois à tarde a maratona se repetia. O regresso pra casa era triste demais, mas, a certeza de que outro janeiro em breve chegaria, espantava as lágrimas e a contagem decrescente dos dias começava ali mesmo. Hoje, essas recordações passam por minha cabeça, feito filme, e eu me espanto:Era eu mesma a protagonista?
    Digam-me, por favor, a quem posso pedir de volta minha infância?

    (Ludmila Saharovsky)
    cronica publicada no jornal O Valeparaibano

      

      Porque escrevo

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      Perguntam-me porque escrevo
      Creio que nasci sob o signo da escrita. O ato de escrever é tão inerente a mim, que não consigo separar-me dele. Escrevendo eu consigo entender o mundo, entender a mim mesma e à realidade que me cerca. Escrevendo me aproximo, sem timidez nem receio das pessoas.
      Quando criança, ao apagar a luz do quarto, eu mergulhava num universo perfeito, imaginado ali mesmo, entre os lençóis da cama. E me viciei. O mundo de dentro era bem melhor que o de fora… Não necessitava de palavras, apenas pensamentos. Ah… aquela felicidade rara do silêncio dos peixes, das formigas, das borboletas. Elas viviam sem emitir qualquer som, e, no entanto se entendiam. E porque este medo da palavra verbalizada?
      Ele existia porque minha língua era estranha. Meus amigos de carne e osso não a compreendiam. As palavras saíam titubeantes, entrecortadas, estrangeiras de minha boca.. .Isto quando já não morriam prematuramente na garganta. Ah… como eu quis então me comunicar emitindo apenas sons, feito os animais. Os sons agônicos me fascinavam. Mas, infelizmente eu nasci pertencendo ao reino dos humanos. E tive que superar minhas dificuldades. Abrir a boca e falar. Mas, antes disto, sentei à mesa e escrevi. Escrevi cartas para amigos imaginários. Escrevi confidências em diário trancado com uma chavinha de borda rendada. Escrevi contos que traduzia. Depois, histórias que eu mesma imaginei. Escrevi poemas. Escrevi estudos. Escrevi discursos. Escrevi crônicas. E não parei mais. Fiz da escrita meu norte. Meu porto seguro. Minha estratégia para fugir da solidão. Minha senha para entrar na casa de pessoas que de outra forma não contataria. Meu ritual para fazer novas conquistas. Para seduzir. Sim, seduzir. A escrita sempre foi minha arma secreta. As letras sempre me arrastaram para a vida. Sua força latejava em minhas veias. Seu exercício enfeitava-me mais do que qualquer roupa, qualquer jóia, qualquer adereço raro. Diferenciava-me na multidão. Minhas palavras escritas, pressentidas, eram como que flores perfumando o caminho em meio à neblina. E estrelas iluminando um céu nem sempre varrido de nuvens. Elas eram minha secreta e íntima melodia. Minha ligação com o divino em mim. Minha ligação com o divino de cada um que se aproximava de mim. Meus pensamentos transformados em escrita eram partículas de luz dançando dentro de meu corpo. De meu cérebro, de minhas entranhas. Eram unicórnios observando a lua refletida nas lagoas.
      Eram princesas de longas cabeleiras douradas preparando-se para o florescer da paixão. Eram a eternidade colorida por mil arco-íris.
      Eram montanhas esvoaçantes e árvores deslizantes. Eram o meu mistério. São o meu mistério. Meu jardim secreto. Meu sagrado, que tenho o privilégio de comungar com quem me lê.
      Ludmila Saharovsky

        

        Exercício para materializar lembranças

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        “A lembrança pura não tem data. Tem uma estação” ensinou-nos Bachelard, e ele estava certo!
        “Aquilo que a memória amou fica eterno” disse Adélia Prado. Mas, como alcançar esse território da eternidade e trazê-lo para o presente?
        Penso que recordar é uma outra forma de habitar o tempo, e o veículo que nos leva a ele é a saudade. Saudade de pessoas que foram importantes em nossa vida. Saudade de lugares, de cheiros, gostos, do timbre de uma voz. Saudade de uma determinada música que se alojou em nossa alma e não se desprende. Saudade de emoções, da infância, da juventude que passou voando! Um instante, um inspirar e expirar, apenas, e já se fez passado.
        “Minha alma é um bolso onde guardo minhas memórias vivas”, escreveu Rubem Alves. Pois a minha, lhes digo: é um trem carregado de reminiscências. Um trem daqueles em que os vagões se perdem na contagem, de tantos que são e, ao mesmo tempo, ele não passa de um vislumbre! Ele não passa de uma estrela cadente cortando os céus, como na música de Raul Seixas: “Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem/Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon/ Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem.” Olho o trem e não consigo toma-lo rumo ao passado! Não consigo aprisionar, materializar, sequer organizar minhas memórias, quanto mais torna-las vivas! Elas vão e vem ao seu bel prazer, e quando penso que, enfim, eu consegui aprisionar alguma, aí é que ela me escapa!
        Com o decorrer do tempo fui aprendendo que, para habitar o território das lembranças é preciso tornar-se mestre no ofício da imaterialidade. Se pensamento é energia pura, as lembranças ficam ali, no vácuo. Elas não são os pontos luminosos. Não! Elas são a sua sombra, por isso é tão complicado retê-las. Por isso lembranças não tem datas, apenas estações. Apenas emoções. E eu pratico. Fecho meus olhos e me deixo flutuar nessas estações, como quem não quer nada… Então, minha alma lança o anzol no mar da memória, e, na maioria das vezes, traz a pesada ausência enroscada nas algas do tempo, em seixos, em calhaus, em musgo. Até livrar-me disso tudo, a ausência já escapou, não teve tempo de virar presença, mas, algo ficou no ar, feito um sopro ecoando no silêncio, que me estremece, me arrepia, roça meu íntimo, suavemente, e se esvai. É assim, feito o farfalhar da seda que não toco, mas adivinho, leve! Ah! A insustentável leveza das recordações! Creio que é por isso que escrevo tanto! As palavras tem o poder, tem a magia de materializar lembranças no papel. Palavras são feito pedras que atiramos no lago e que vão formando aqueles círculos visíveis, que vão se abrindo mais e mais e se permitem ser tocados, quando a pedra que os provocou, já nem tem mais importância alguma.
        Todo esse texto, essas reflexões, são para trazer, você, minha mãe, à essa estação que sua ausência criou em mim, e que as lembranças jamais preenchem, e que as saudades jamais saciam, e a eternidade não consegue aproximar…
        Ludmila

          

          E quando a palavra não existia?

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          E quando a palavra não existia?
          Quando pedra era pedra, simplesmente, reconhecida em sua essência pelo toque? E noite era noite, e chuva era chuva, e ave era ave, e as emoções que provocavam permaneciam agarradas aos nossos ossos e medulas e passavam a fazer parte de nosso inconsciente? Nesse tempo as palavras dormiam no silêncio da mente e não faziam falta. Tudo podia ser reconhecido pela cor, som, odor, energia, movimento. A cor falava aos sentidos: o homem pintava-se de vermelho e buscava ação. Dela nasciam o ardor e os impulsos, e as conquistas iam se realizando.
          O amarelo remetia à alegria, à exuberância, ao sabor doce das frutas maduras: o calor do sol incitando à vida.
          E vinha o aconchego do verde, a relva, a cama de folhas macias, o olhar vagando pelos campos infindáveis sem sustos nem atropelos.
          E no azul do céu e do mar, estava o desprendimento, o infinito, o sonho, o desejo das profundezas e das alturas.
          O marrom era a cor do campo lavrado, do cansaço ao final do dia, da magia das sementes germinadas no útero da grande mãe, a terra.
          E o negro manto do mistério recobria tudo: a noite, a caverna, o medo, os demônios, os assombros, até surgir o branco da lua, da clareza, da luz difusa, dos momentos de paz quando tudo se aquietava e o homem observava o céu buscando nortear-se pela disposição dos astros!
          Não sei se foi realmente o Verbo que criou tudo o que existe. Penso que ele nomeou as coisas que havia e então começou nosso delírio! Colocamos nas palavras um peso e uma importância que elas não podem suportar…
          Quem sou eu? Ninguém mais se identifica como a energia que permeia a forma. Ninguém se reconhece como a semente que se fez corpo composto por terra, fogo, água e ar. Por luz, cor e fantasia!
          Palavras não rompem cercas nem libertam. Elas não gemem nem choram. Não nos envolvem nos tons do arco-íris. Não nos perfumam. Não nos refletem. Não nos redimem.
          Palavras não desvendam os segredos dos oráculos. Estes se revelam nos ossos, nas vísceras, nas pedras, no fogo, na areia, nas sementes… Quiçá nas estrelas!
          Mais vale um aceno! Mais vale um beijo, um abraço, um soco, um uivo, um sorriso, um cheiro.
          “Ao criar uma palavra para cada coisa substituímos as coisas pelas palavras” já descobriu Foucault. E então mergulhamos na ilusão, mergulhamos em maya.
          A vida é dominada pela ação em si, e não pela palavra!
          Mas, basta reconhecermos em nós que a palavra é uma falácia, que o verbo nomeia mas não revela a essência, e que é no silêncio que ouvimos a voz de nossa alma, e então as cores, os sons, a luz e o movimento nos levarão para aquele outro lado, onde o verbo não se faz carne, mas assim mesmo nos habita!
          (Ludmila Saharovsky)

            

            O sumiço das galinhas

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            Como todos, na vizinhança, no bairro em que morávamos em Carapicuíba, nós também tínhamos um galinheiro. Quantas vezes eu despertei ao som dos galos saudando o nascer do sol, cada qual com seu cocoricó particular – sempre estridente – como tão bem descreveu João Cabral de Melo Neto em seu poema Tecendo a Manhã:
            “Um galo sozinho não tece a manhã/ ele precisará sempre de outros galos/ de um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro…”
            Pois era exatamente assim que amanhecia nos dias de minha infância. Logo, adultos e crianças pulavam da cama para enfrentar as lides, que não eram poucas! Nosso galinheiro era um cercado de tela no fundo do quintal, onde o avô improvisara um tosco telhado de sapé que protegia o poleiro. Nas feiras-livres havia um grande comércio de galinhas poedeiras: ruivas, brancas, carijós. Seus ovos, depois de galados, eram reservados. Assim que alguma começasse a apresentar sinais de que iria ficar choca: as penas arrepiadas, a cantilena diferente, a busca de um canto para se aninhar, já a avó corria para providenciar os ovos e eu ficava torcendo para que os pintinhos nascessem logo. A transformação de um ovo num ser vivo foi o primeiro milagre que presenciei. Com o passar dos dias, eles iam ficando mais pesados e, ao serem observados contra a luz, percebia-se, nitidamente, que dentro se formavam os contornos de outra ave: o bico, os pés, as tênues veias transportando o sangue. As vizinhas dependuravam-se nas cercas que delimitavam os quintais, em busca de uma prosa que acontecia mais por gestos do que verbalizada. Ainda não dominávamos tão bem o novo idioma, assim, na base de muita mímica, eram informadas de quantos ovos haviam vingado. Ofereciam então talos de couve, folhas amassadas de alface e outras verduras que, bem picadinhas, reforçavam a dieta daquela numerosa prole alimentada também com quirera e minhocas. Em algumas semanas as aves começavam a adquirir características próprias, revelando o sexo. Os varões eram sempre os mais briguentos, sendo os primeiros a cumprirem seu destino de ensopado!
            O curioso era como cada família Identificava suas aves. Uma fita colorida atada ao pé, logo remetia as extraviadas ao seu dono, num código que permitia a todos um convívio absolutamente pacifico.
            Certo dia chegou à vila um circo mambembe composto por alguns pares de artistas, meia dúzia de caminhões, um casal de pôneis amestrados, alguns cães vestidos com saiotes e boleros, um elefante muito triste e um leão meio cansado…Não é preciso dizer que a garotada entrou em êxtase! Naquele fim de mundo, um circo era uma transformação radical da rotina. E foi! Tanto que, após anos e anos de distância que me separam dos fatos, rememoro como se fosse ontem, a indignação de D. Rosa, inconformada com o sumiço de sua carijó. Foram aqueles desocupados, afirmou ela convicta, indo tomar satisfações com o homem magrelo que, equilibrando-se sobre longas pernas de pau, gritava pelo megafone as atrações de cada espetáculo. O dialogo esquentou de tal maneira que foi preciso chamar Seu Raimundo, o guarda civil, para apaziguar os ânimos. Mas… a galinha de D. Rosa não foi a única a desaparecer misteriosamente. Outras a seguiram provocando um reboliço na rua, maior do que em dias de feira ou de quermesse! Eu sei é que, por conta do desaparecimento das aves, foi-nos terminantemente proibido rondar as adjacências. E se começassem a desaparecer também as crianças? Assim, sem ter caído nas graças do respeitável público, logo o circo foi desmontado e partiu.
            Quanto ao mistério do sumiço das galinhas…este jamais foi elucidado!
            (Ludmila Saharovsky)

              

              Contam os antigos…

              Contam os antigos...

              Ninguém soube como tudo começou. De repente não se falava de outra coisa: a cidade fora visitada por extraterrestres. E não era a primeira vez! De repente, sem que ninguém soubesse como ou por que, as comadres reuniam-se e passavam o dia comentando sobre os tais dos “marcianos”.
              O tempo passava, todo mundo esquecia, mas desta vez aconteceu logo com o seu Jurandir, o boticário mais respeitado do pedaço.
              Contou ele que vira as luzes piscando e se aproximando na neblina da madrugada que o pegara insone, observando a Mantiqueira do terraço da sala. Naquela época, todos acreditavam em tudo, principalmente, quando nada acontecia.
              Eis que a notícia do disco voador começou de mansinho, como as grandes epidemias que se espalham, aparentemente vindas do nada: seu Jura fora raptado por uma nave, bem na porta de sua casa, localizada na principal praça da cidade, ao lado da igreja e de frente à Câmara Municipal. Começou tudo com as luzinhas no céu, que ele saiu para ver mais de perto, de pijama e chinelos. Esquecera até do boné contra o sereno. A cidade dormia seu justo sono: Nenhuns cachorros sem dono ou bêbado vadio serviram de testemunhas. Nenhuma dama da noite perambulava pela quadra, quando o brilho materializou-se num funil, ofuscando-o, hipnotizando-o, até que se sentiu suspenso no ar e depois… depois não se recordava de mais nada!
              Os mais velhos garantiram que seu Jura estava variando. Oitenta anos! Não seria para menos! Depois que dona Mocinha morreu, ele nunca mais foi o mesmo. Não dizia coisa com coisa, tomara-se recluso e ante social, e agora vinha com essa patacoada sem pé nem cabeça. Disco voador na cidade, e logo na Praça da Matriz! Onde é que já se viu?
              O fato é que a história mexeu com a população mais do que se poderia esperar, principalmente com a moçada! À noite, ninguém conseguia dormir. Grupos organizavam-se para vigílias permanentes. O céu noturno era perscrutado com binóculos, lunetas, óculos de grau. Qualquer vidro de aumento, à mão, servia para o intento.
              Quando a notícia parecia esfriar, logo surgia outra, e a mais recente dava conta de que seu Jurandir tinha em seu poder, uma prova. Uma prova incontestável de existência dos ETs.
              Os chefes de reportagem dos principais jornais ordenaram aos seus noticiaristas que municiassem o povo com revelações assombrosas. Tabloides vendiam feito água!
              Seu Jura aparecia estampado, diariamente, nas primeiras páginas até dos periódicos da Capital. Tornou-se presença obrigatória nas rodas de prosa das esquinas, na mesa do bar do seu Constâncio, nos programas de auditório das rádios da região, e estaria até na TV, se essa já existisse. Mas, o tempo passava e a tal da prova nunca que era apresentada, até que, por natural cansaço, todos começaram a acreditar que ela já fora mostrada, e que provocara um choque geral.
              Os mais enfáticos chegaram a afirmar que seu Jura tomara-se portador de poderes paranormais, a partir do objeto secreto que os marcianos lhe confiaram. Filas de crédulos começaram a formar-se em frente à sua casa em busca de soluções para os mais variados problemas. Ele resolvia desde olho gordo, passando por amores impossíveis, perdas de emprego e até aleijões.
              Hoje, seu Jurandir da Farmácia empresta o nome à principal avenida da cidade. Lembram os antigos que fora um personagem ilustre, um ser humano ímpar. Um benfeitor. Quanto aos extraterrestres… mas quem foi que disse que eles existiram?
              (Ludmila Saharovsky)

                

                Palavras/Silêncios

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                “O corpo é uma coisa encantada que precisa mais que comida e bebida para viver.
                Ele precisa de palavras. Porque é nelas que mora a esperança”
                (Rubem Alves)

                Amo as reflexões às quais os escritos de Rubem Alves sempre me remetem.
                Penso em sua afirmativa de que “o corpo necessita de palavras que o alimentem” e divago…Será?
                Não é em todas as palavras que moram a esperança, a beleza, a delicadeza.
                Existem algumas, venenosas, que vão se desprendendo de nós, assim…de repente, sem qualquer compromisso que não seja o de ferir. Armas palavras.
                Outras vadias, vazias soltam-se ao vento, tagareladas, esparramadas, diluídas, não deixam nem uma única pegada. Ocas palavras.
                Sem âncora, sem encadeamento, sem eco, elas como que entram por um ouvido e saem pelo outro, placebos de idéias que, se não contêm em si o germe da comunicação, a intenção da partilha, do preenchimento do outro com fé e alegria… mal também não fazem. Palavras cotidianas.
                Fala a mãe, fala o pai, fala o filho, fala a vizinha, a amiga, a avó, o padeiro, o pedreiro, o colega de trabalho. Falam o dia inteiro, mas… o que foi que disseram? Eu mesma não me recordo de um décimo do que matraquei, o que dizer então, do que ouvi? Rumino com meus botões: porquê falamos tanto?
                Nesse mundo onde “quem não se comunica se trumbica” jamais nos ensinaram o poder de comunicação que há, também, no silêncio. Nós nunca nos concedemos um único minuto, em nossas vidas, para “ouvir” com os outros sentidos: intuir, perceber as múltiplas mensagens contidas num gesto, num olhar, num suspiro. O corpo inteiro fala!
                Parece que vivemos numa época de terror generalizado ao silêncio! Ao nosso derredor precisa haver sempre algum ruído: do rádio, da TV, do walkman, do CD, da campainha do celular, do pager, tudo permanentemente ligado! E tome música, notícias, receitas, entrevistas, críticas, testemunhos, propagandas, diálogos, monólogos, gritos e sussurros. E agora, conversamos também com olhos e dedos, o dia inteiro “ligados” ao computador.
                O silêncio talvez nos assuste tanto, porque nos deixa a sós conosco mesmos, a cabeça livre para pensar, os sentidos libertos para investigar, sentir, meditar, filosofar, descobrir. E, para não constatarmos o drama de que não temos qualquer assunto íntimo que nos instigue, recorremos aos sons ininterruptos que certamente nos entorpecem os sentidos e nos libertam do compromisso com outras necessidades mais sutis. Se nós não conseguimos saber da semente, da raiz, do galho, da flor e do fruto em nós, como saber a árvore que somos? Como entrar em sintonia com o mundo que nos cerca, se não ouvimos, não entendemos, não decodificamos suas linguagens de vento, de chuva, sol, lua, primavera, outono, orvalho, sereno, neblina? Se não percebemos o som de abelhas, moscas, mariposas, sapos, cigarras, grilos, riachos, cachoeiras, mares?
                Ah! Que saudades de nossos antepassados que podiam afirmar com segurança que iria chover, gear ou haver longa estiagem apenas compreendendo o discurso da natureza. Eles ouviam e entendiam até a linguagem de seus ossos!
                Tudo se comunica, amigos, mas não apenas por palavras. O mar tem voz, a floresta fala, o livro conta histórias. Conversam pessegueiros e violetas, cães, pássaros, cavalos, constelações. Vibra o infinito, dentro e fora de nós: a melodia das esferas…
                Talvez, para tentarmos penetrar nesse mágico espaço do nascedouro das palavras – certas, consistentes, raras – necessitemos do exercício do silêncio. Quem sabe consigamos semear mais paz, amor e esperança.
                Não custa tentar! (Ludmila Saharovsky)

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