Tempo Submerso: Resenha de Elaine Rocha

Livraria Nobel de Ubatuba _SP.

Livraria Nobel de Ubatuba _SP.

O novo livro de Ludmila Saharovsky TEMPO SUBMERSO, é uma obra de impressionante beleza, repleta de poesia e de leveza, apesar de tratar de um tema extremamente pesado: o terror imposto ao povo da Rússia durante o século XX.
Com uma narrativa pessoal e emocionada, Ludmila nos leva com ela em sua viagem ao norte da Rússia, às margens do Mar Branco, a Moscow, Yugoslavia, Austria e Brasil, em diferentes momentos que vão desde a primeira década do século XX até 2003, quando a autora viaja para o país de seus pais em busca de respostas sobre o desaparecimento de sua família, entre os primeiros anos do terror Trotskista e o terror comandado pelo presidente Stálin.
A história é contada como uma experiência privada e íntima, relacionando a grande trama política de um governo imperialista que tentava implantar um novo regime às vidas de pessoas que lograram sobreviver e à morte daqueles que sucumbiram nos massacres, nos campos de execução e nas prisões geladas. A religiosidade colocada à prova, a lealdade à família estão em cada página de um trabalho que se pode chamar de jornalítico, histórico e poético.
O que se coloca em questão é a fragilidade humana, frente à ditadura e à corrupção da violência que nega qualquer valor às vidas de homens, mulheres e crianças; a mesma fragilidade humana que leva – do outro lado dessa tênue linha – os corações de homens e mulheres a fecharem-se ao apelo de seus familiares, vizinhos e conterrâneo, e que senão aplica-lhes o terror, fecha os ouvidos, os olhos e a boca tornando-se cúmplices involuntários.
Eu comparo este livro à obra de Maurice Howbwachs, A Memória Coletiva; porque cada portão, cada bosque, cada igreja, cada pedra do caminho percorrido por Ludmila trouxe-lhe uma memória, que não era apenas sua, mas de um povo que ainda espera por respostas.
É com grande prazer que eu recomendo a leitura deste livro para professores, historiadores e leigos. Para todos aqueles que têm sede de saber e mantém em seu espírito a capacidade de se indignar.
Elaine P. Rocha, PhD

Elaine P. Rocha, PhD Lecturer Dept. History and Philosophy University of the West Indies Cave Hill, Barbados

Elaine P. Rocha, PhD
Lecturer Dept. History and Philosophy
University of the West Indies
Cave Hill, Barbados

Elaine, é minha amiga querida de muitos anos.
Trabalhamos juntas, em 1998 quando eu presidi a Fundação Cultural de Jacareí e ela foi a responsável por “salvar” documentos históricos de inestimável valor, que encontravam-se contaminados por umidade e BHC, esparramados em porões de nossa cidade.
Elaine casou-se e hoje mora em Barbados, onde leciona Historia na Universidade. Esta resenha foi um presente de Páscoa que dela recebi e que me deixou assim…com a alma saindo em gotas pelos olhos! Obrigada, Elaine! Grande abraço com meu amor e a minha gratidão!
(Ludmila)

    

    Páscoa de antes

    naife de Carolina premiado na Bienal(pintura naife de Carolina Migoto, premiada em bienal)

    Um ritual de preparativos antecedia sempre a Páscoa, festa mais importante do que a de Natal, na casa de minha infância, entre os avós.
    “Morrer, Deus me ajude que seja depois da Páscoa”, comentavam eles, ano após ano. A mesma eterna ladainha…e as Santas Semanas sucediam-se sem mortes na família. Um dia porém, a avó se foi, e o avô também, antes da Páscoa, contrariando seus desejos e todo o planejamento, deixando-me como herança as antigas tradições e uma saudade incontida.
    Na quaresma não entrava carne em casa, nem leite, ovos ou manteiga. Era estranho passar-se um tempo ingerindo dieta vegetariana, mas os avós eram severos e intransigentes quando se tratava de leis divinas. Ou seguia-se ao pé da letra o hábito dos primeiros cristãos, ou o castigo viria: líquido e certo! O fato é que, assim, sobrevivemos, fortalecendo corpo e alma. A semana que precedia a esperada comemoração era-me especial em todos os aspectos. Primeiro, as missas noturnas e diárias, nas quais, emocionada, eu acompanhava em capítulos, a história dos últimos dias de Jesus, narrada com voz solene pelo avô, na leitura dos evangelhos: Domingo de Ramos, a ceia entre os apóstolos, a oração no Jardim das Oliveiras, a traição de Judas, o julgamento de Pôncio Pilatos, as negações de Pedro, os passos da Paixão, o desespêro de Verônica, a crucificação e a morte de Jesus e, passados três dias, o milagre de sua Ressureição. Em minha cabeça infantil as imagens formavam-se dramáticas, o coração apertava de angústia e eu me ajoelhava no templo, mal aguentando a dor de tamanha injustiça, as lágrimas pingando sobre o assoalho da velha igreja. “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem!”
    Durante o dia, em casa, o alvoroço dos preparativos: as conservas de pepino azedo, tomates e cogumelos; a defumação do arenque, o doce de ricota com passas e favas de baunilha, o pernil, os panetones altos, encimados por casquetes rendados de glacê e confeitos. O ritual do tingimento de ovos era o mais aguardado por mim. Depois de cozido, o ovo era mergulhado em anilinas importadas (verdes, azuis, vermelhas, cor de violeta) e decorado com arabescos, flores, coelhos, igrejas de cúpulas douradas e o que mais a imaginação permitisse. Os mais bonitos eram separados para presentear os amigos. Os outros seriam consumidos pela família durante a ceia. Odores de diversas especiarias ensalivavam-me a boca antecipando o cardápio da mesa farta após a longa abstinência da quaresma. Quantas noites eu adormeci aspirando o cheiro bom de açafrão, extrato de laranja e de favas de baunilha, iguarias importadas que a avó adquiria com economias feitas durante meses. Eram cheiros da sua infância que ela trazia para a minha. O cochilo à tarde era ítem obrigatório para que eu enfrentasse, valentemente, o longo amanhecer do Domingo de Páscoa. Envolvia-me, então, um sono leve e inquieto, interrompido a cada minuto pelo ruído das últimas providências e pelo alvoroço que me invadia a alma: a expectativa da procissão do Senhor morto, iluminada por velas e archotes pelas ruas ao redor do templo, os cânticos fúnebres entoados pelo coral regido por meu pai, o reencontro com velhos amigos da família que me presenteavam com pequenos coelhos feitos de marzipan (da Sonksen) que eu mal via a hora de devorar!
    Parece que foi ontem: as lembranças da igreja repleta de flores e fiéis, a veste roxa do avô, que após a meia noite era trocada por uma branca e dourada, as luzes da igreja acendendo-se e iluminando rostos de homens, mulheres e crianças que, abraçando-se festejavam, novamente, o milagre da Ressureição. “Xristos Voskresse!” “Cristo Ressuscitou!” todos repetiam.
    Quantas vezes eu me quedei silente no interior do templo, observando a imagem daquele Jesus desamparado, inerte, tombado sobre si mesmo, que tantos pranteavam e, mesmo sabendo o final daquele drama, eu sofria. Jamais compreendi o motivo das religiões escolherem essa sua representação como símbolo do cristianismo, em vez Dele renascido em toda a sua glória. O calvário da dor nos impressiona mais do que o milagre do renascimento? Cresci e prossigo pensando igual. Hoje já não sofro tanto por esse Menino que me apresentaram: que nasceu perseguido, cresceu escondido, sofreu tantas ofensas e morreu na cruz. Cedo intuí que Jesus foi um brilhante inovador de idéias, pelas quais não relutou em dar a própria vida. O filho de Deus que nos disse: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.”
    Pena que, tantos séculos passados, sua Via Crucis não nos tenha inspirado!
    (Ludmila Saharovsky – crônica publicada no Diário de Jacareí em março de 1997)

      

      Canção de Maria

      Sepulcro santo

      Em que encaixe desta cruz
      Insere-se meu drama?
      Em que jazigo, em que mortalha,
      em que sudário? Eu penso
      enquanto teço este linho
      Que cobrirá teu corpo solitário.
      Ah! O suplício de ver-te abatido
      por essa lança a atravessar também meu peito.
      Perdão, peço, meu Pai, não sei o que faço
      Quando Lhe imploro que mude teu calvário!
      Sei que tua fome e sede por justiça
      Levaram-te à Via Crucis que hoje segues
      Mas…esse vinagre untando o talho aberto
      E essa coroa de espinhos que te veste
      Refletem em mim a dor toda que sentes
      Por esses homens que seguem ignorantes…
      Sou uma dentre tantas mulheres da Judéia
      Que choram sobre os corpos
      De seus filhos mortos,
      pelas vidas que teceram e se consomem
      em lutas, traições e injustiças
      No solo seco dessa Palestina
      No solo seco desse mundo inteiro
      Que Páscoa alguma, nunca, ressuscita!

      (Ludmila Saharovky – Publicado no longínquo ano de 1980 no
      Diário de Jacareí)

         

        Contos Mínimos: Refém

        foto internet

        Respeitei as doze formigas que, em fila indiana caminhavam perdidas pelas táboas do assoalho de meu quarto.
        Respeitei a procisão solene que, dia seguinte, atravessou a cozinha e perdeu-se no túnel escuro escavado sob a rozeira, na grama do jardim. Respeito hoje, o batalhão que me carrega, presa subjugada, e me enfia, sem cerimônias, na boca do formigueiro. Respeitarão as formigas minha condição de refém?
        (Ludmila)

          

          As Faces de Cristo

          Cristo e São Neméas

          Num interessantíssimo documentário produzido para a BBC (Inglaterra) arqueólogos e especialistas em reconstituição física a partir de crânios e ossadas, com a ajuda de computação gráfica, tentaram chegar o mais próximo possível de como teria sido a face de Jesus de Nazaré.
          O rosto que nos acostumamos a ver, estampado em livros santos, imagens, ícones, filmes, na verdade não corresponde em nada aos milhares de tipos de esqueletos pesquisados, dos homens que viveram em Jerusalém há dois mil anos atrás. E por quê?
          Simplesmente porque o biotipo da época mostrou serem todos eles de tez muito morena, pouca barba, cabelo curtos e escuros, olhos negros e traços fortes, muito semelhantes à população árabe de hoje.
          Para as crucificações, eram utilizados troncos de árvores mortas, sobre os quais eram colocados paus na transversal, e, os transgressores condenados, amarrados, antes de serem pregados. Isto porque os ossos das mãos não suportariam o peso do corpo sem se partirem. Pelo mesmo motivo os pés também eram apoiados em suportes toscos.
          O documentário seguiu estritamente o caminho da pesquisa histórica. Sem questionar dogmas ou escrituras. Tentando não arranhar a fé, fosse ela qual fosse.
          Foram ouvidos médicos, antropólogos, arqueólogos, cientistas sociais, teólogos, espiritualistas, na tentativa de reconstruir historicamente o contexto social e político de dois mil anos atrás, sobre o qual pairam tantas dúvidas e controvérsias. Para tentar compreender cientificamente por quanto tempo um corpo humano suportaria tamanha tortura e suplícios.
          Um condenado à morte pela crucificação levava sempre alguns dias agonizando.Sob o sol causticante, sem água, as aves de rapina à volta. O teste da lança era a prova derradeira do final. Ao Nazareno, estenderam uma lança com um pano ensopado em vinagre, relataram, para aumentar a sede. Alguns estudiosos levantaram a hipótese de que nele, em verdade, haveria poderia um preparado anestésico. Dopado, o corpo penderia, pareceria morto, e os discípulos poderiam recolhe-lo para preparar o ritual fúnebre, minimizando o sofrimento… Quem sabe até, argumentaram, conseguiram preservá-lo com vida.
          Existe uma corrente de estudiosos, que acredita que Jesus foi salvo da morte por seus seguidores e viveu longo tempo pregando sua doutrina. Haverá os que concordam e os que discordam absolutamente desta afirmação, como sendo uma heresia. Dogmas da fé não se discutem. Aceitam-se ou não. E eu apenas relato aqui um documentário interessante.
          O fato é que a existência deste Ser ímpar inspirou o surgimento de uma nova moral religiosa que sobrepôs-se a todos os cultos precedentes, ou seja, instituiu uma doutrina que pregou a ascendência da alma sobre o corpo, e a lei da compreensão, do respeito ao próximo e do perdão.
          É uma pena, que dois mil anos depois, os homens prossigam matando, subjugando, humilhando e torturando, sem dor nem piedade, seus semelhantes, seus irmãos. Mas, se todos somos filhos de um mesmo Pai, e se toda a agressão é um pedido desesperado de amor, cabe a nós repetirmos e interiorizarmos as palavras do Mestre de Nazaré que no inspira. Ele, que, no auge do sofrimento, olhando para seus algozes, conseguiu dizer:
          “Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem.”
          Quantos de nós somos capazes de dize-lo, do fundo de nossa alma, sem julgar, sem pré-julgar, sem condenar?
          Que a Páscoa não se resuma apenas à compra desenfreada de ovos de chocolate que já povoam, aos milhares, as prateleiras de todas as lojas e supermercados, e que consumiremos em nome de um renascer (que a data significa) muito, mas, muito distante de nós!
          Creio ser esta uma bela reflexão para fazermos nesta quaresma que nos prepara para o reconhecimento do espírito que nos habita.
          Ludmila Saharovsky
          (publicado no site Regional News na Coluna Tertius Millenium, alguns anos atrás)

          Leia mais: http://veja.abril.com.br/040401/p_064.html

            

            Feminino plural

            Mulheres_Plural
            Há milhares de anos, desde que as tribos guerreiras indo-europeias, que cultuavam os deuses celestes/solares, subjugaram os povos pacíficos que cultuavam as deusas terrestres/lunares na velha Europa, o patriarcado imposto vem anulando, dominando, denegrindo e subjugando tudo que é considerado feminino.
            A Deusa Mãe, adorada num período histórico em que a ciência, a religião e a moral ocupavam a mesma esfera de importância, localiza-se numa época em que os seres humanos sentiam-se parte da natureza e recorriam ao saber e à veneração das energias da Terra. Às mulheres cabia cuidar do fogo, das crianças – que pertenciam ao clã – preparar refeições, tecer vestimentas, criar utensílios, armazenar água e grãos. Por conta dessas funções sociais, foram elas que estabeleceram a cultura e conduziram a humanidade da era dos caçadores/coletores para a sociedade agrícola. A prática de armazenar alimentos para o período de estio, ensinou-lhes os ciclos da vida vegetal: grãos guardados junto ao solo, brotavam e enraizavam, podendo, portanto, ser cultivados. Foram elas que descobriram as propriedades curativas das plantas e o preparo de poções e unguentos. Foram elas que, pela observação da lua e suas fases, perceberam que a magia do sangue e o tempo de gestação dos fetos que carregavam em si, ligavam-se intimamente a estes ciclos. Mas, como entender racionalmente estes fatos quando se desconhecia completamente o corpo humano? Acreditou-se, então, haver uma força mítica em ação, atuando apenas no corpo feminino, que refletia o poder da Deusa. E por isso, as mulheres passaram a ser reverenciadas. Em louvor à Divindade Feminina, construíram-se templos, não apenas no antigo território europeu – incluindo aí a França e a Espanha- mas, também, nos sítios sagrados ao sul da Inglaterra, para onde o culto foi levado por comerciantes, que viajavam da Espanha para a Bretanha, por volta de 2000 anos A.C. Em algum ponto entre 600 e 500 A.C., os celtas invadiram a Gália e, sob a liderança religiosa dos druidas (conhecedores do carvalho) passaram a celebrar ritos em santuários nas florestas.
            Com o advento da era cristã, tudo mudou. Os adoradores da Deusa foram perseguidos e condenados como pagãos, idólatras e feiticeiros e muitas interpretações errôneas passaram a ser feitas, por total desconhecimento e preconceito à antiga religião. As mulheres, além de serem consideradas impuras e responsabilizadas pelo pecado original, foram queimadas às centenas nas fogueiras da inquisição, sem direito a qualquer tipo de defesa.
            O que precisamos, finalmente, compreender é que o papel social desempenhado pelas mulheres permitiu-lhes exercitar a observação, que engendrou associações e descobertas, estimulando de maneira própria a mente feminina – mais intuitiva – e propiciando o desenvolvimento de uma consciência diversificada que evoluiu por caminhos mentais diferentes da masculina, mais prática e centrada na ação imediata. Conhecer as diferenças que nos complementam, e resgatar o respeito pelo Sagrado Feminino que se deturpou propositadamente, servindo a interesses judaico cristãos nebulosos, não é só questão de eliminar uma injustiça milenar. Trata-se, principalmente, de restabelecer o equilíbrio tão necessário, para que as novas gerações de homens e mulheres caminhem juntos para um futuro de respeito mútuo e cooperação. Meditar sobre estes fatos, é a melhor forma de homenagear a todas as mulheres em seu dia.
            (Ludmila Saharovsky)
            (publicado no jornal Regional News, na coluna Tertius Millenium)

               

              Gulag

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              Assistam a essa interessantíssima entrevista da jornalista Anne Applebaum, vencedora do prêmio Pulitzer de não ficção de 2004, com seu livro Gulag. Em seu prólogo ela escreve algo assustador:

              “Este livro não foi escrito para que tais fatos não se repitam novamente. Ele foi escrito porque, com certeza, eles se repetirão.” Anne Applebaum

              Meu livro, Tempo Submerso, conta um trecho da história dos Gulag Soviéticos, focando, principalmente, o primeiro deles, localizado no Arquipélago de Solovki. Muitos interlocutores, nas diversas palestras que fiz sobre o assunto, contestaram dados, argumentando que não existem estatísticas oficiais sobre o número de mortos e as barbaridades cometidas no período Stalinista. Muitos continuam simpatizantes desse socialismo, num desconhecimento fragoroso da História dos Gulag e suas trágicas consequências.

              Cada vez mais eu acredito que desconhecimento histórico nos induz à repetição dos mesmo erros.
              Muito mais que isso, a história nos atesta que, desde os anos 20 o Ocidente sabia sobre a organização destes Campos de Trabalhos Forçados, que explorava até a morte milhares de seres humanos, e nada fez. Os políticos sabiam, os intelectuais sabiam, os jornalistas sabiam, mas…os exemplos de barbárie do novo regime socialista, que prenunciava um belo futuro para a humanidade, foram mascarados por todos eles, em nome de uma ideologias que, infelizmente, até hoje sobrevive em muitos países e prossegue sendo admirada! O fato é, realmente, assustador. Quando se levanta uma bandeira, com completo desconhecimento histórico, aos mesmos fatos se repetem. Indefinidamente… (Ludmila Saharovsky)

              Para quem quiser ler o livro de Applebaum:
              http://www.libertarianismo.org/livros/aagulag.pdf

                

                Viagens de antes

                paisagem, detalhe

                Os finais de semana de minha infância eram preenchidos pela expectativa deliciosa e única da aventura que seria, novamente, percorrer o longo caminho até o templo ortodoxo de Vila Alpina, de trem. Eu, linda em meu vestido de domingo, as tranças caprichosamente amarradas por grandes laços de fita de organza arrematadas por ponto de ajur, os sapatos modelo “boneca” em verniz preto (eles deixavam-me doloridas marcas nos calcanhares, que eu, estoicamente, suportava) sentava-me sempre ao lado da enorme janela. Observava, feliz, a manhã passar com suas caleidoscópicas imagens embaladas pela cantilena da máquina nos trilhos, como no poema Trem de Ferro de Manoel Bandeira: Ôo/ foge bicho/ foge povo/ passa ponte/ passa poste/ passa pato/ passa boi/ passa boiada/ passa galho/ de ingazeira/ debruçada/ que vontade/de cantar/agora sim/ café com pão/ agora sim/ café com pão!
                Café com pão…Ah! A fome me torturava, mas, a comunhão… (lembram-se que lá no antigamente a gente só podia comungar em jejum?) Pois então! Ao meu lado crianças deliciavam-se com variadas e coloridas guloseimas enquanto eu engolia em seco, oferecendo aquele pequeno sacrifício ao menino Jesus, enquanto distraia-me com a paisagem. Mais tarde, casada, não trocava por nada a viagem de férias, com meus filhos pequenos, ao Rio de Janeiro, feita naquelas composições cintilantes de aço, formadas por carros-dormitórios duplos, cabine de cima, cabine de baixo, o cheiro de trem inesquecível e tão particular. Nós íamos deitados, juntinhos na cama beliche, o sono chegando mansamente, o céu salpicado de estrelas, a vida sacolejando por dentro de incontáveis túneis e curvas em direção ao mar. Pela manhã, após os malabarismos para escovar os dentes naquele banheiro minúsculo, dando bom dia aos passageiros que já estavam na fila, todos bem dormidos e arrumados, chegávamos aos subúrbios do Rio, sentindo o calor gostoso que nos recebia, junto com meus sogros, na estação. Então, àquele burburinho de malas e de pessoas misturava-se a alegria da chegada: Oô…Vou depressa/ vou correndo/ vou na toda/ que só levo/ pouca gente/ pouca gente/ pouca gente…
                Na Rússia, a viagem entre Moscou e S. Petersburgo de trem, é muito concorrida, chique e sexy.(para os que podem ir de primeira classe!) A locomotiva, que parte às 23 horas é composta por inúmeros vagões e engalanada com brasões de latão que ofuscam a vista, de tão polidos! Os comissários de bordo, todos homens, com seus uniformes azuis escuros e galões dourados vão encaminhando os passageiros para cabines individuais. Assim que você se acomoda, aparece um garçom oferecendo champanhe e um sortido cardápio à escolha do viajante, onde não falta o famoso caviar de beluga. A noite passa rapidamente entre edredons de penas e a neve caindo do lado de fora, deixando a paisagem com jeito de cenário de filme. O sono custa a chegar, pois é tão bom usufruir daquele conforto, daquele astral, a cantiga das rodas sobre os trilhos, a manhã surgindo lentamente! Já a travessia de Moscou ao extremo norte do País dura muitos dias. As pessoas leem, escrevem, dormem, fazem as refeições, conversam nos corredores e nos vagões restaurantes. A travessia é muito mais instigante, agradável e cômoda do que de avião. Aliás, na Europa inteira viaja-se muito de trem. É cômodo. É econômico. Você descansa, cochila, relaxa. Conhece melhor a região, curte a paisagem, faz novos amigos, conversa, medita. São países civilizados, com outros hábitos e costumes. O trem é uma opção muito procurada e utilizada. Diferente daqui, onde antigos vagões viram sucata ou saudosas lembranças de um Brasil que optou pelo transporte rodoviário, tão impiedoso e chato e, pelo transporte aéreo que deixa muito a desejar! Viajar sem poesia, que graça tem?
                Ludmila Saharovsky
                (crônica publicada no Jornal Valeparaibano)

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