O medo é um guia cego.
Ele nasce de algum ponto obscuro em nosso interior, e quando nos damos conta, já é tarde. Estamos sitiados, reféns de um sentimento que nos acovarda, imobiliza, limita, transmuta. O corpo responde encolhendo-se. O cérebro produz pensamentos de ódio, incompreensão, revolta. E a alma…Ah! A alma sofre enclausurada. Dentro do peito arrebentam-se mil desejos contraditórios. O que seria melhor: O enfrentamento? O recolhimento? O alheamento? A placidez? A barbárie? A indiferença? A fuga?
Um tremor desliza por nossos nervos e arrepia a pele deixando os sentidos em guarda: De onde virá o inimigo?
O medo é um sentimento limoso.
Ele se adere a nós por dentro, por fora, e nos subjuga. Faz com que caminhemos em círculos, com dificuldade de nos movermos, como se estivéssemos com as botas cheias de lama coladas ao chão. Por mais que haja brisa, e que a luz do sol brilhe lá fora, esse lá fora parece um lugar inatingível. O vento não chega até nós, para aplacar o suor do corpo.Tudo se reveste de ameaça: um gesto, uma frase, um ruído, qualquer presença. Um segundo pode fazer toda a diferença entre o viver e o morrer. . Num instante uma rajada atravessa o carro, a porta, a parede e nos pega ali, completamente indefesos, despreparados, aturdidos, modificando radicalmente nossas vidas.
O medo é um espectro.
Ele nos persegue e nos alcança em qualquer esconderijo. Invisível ele dissolve nossas convicções e nos acua. Sufoca as esperanças, aniquila o amor próprio. Deixa-nos órfãos, à mercê, do lado negro da força, que não reconhece limites…Que não respeita esconderijos, sejam eles físicos, sejam psicológicos. E, nessa contínua espera da porta que em nós, a qualquer momento pode ser arrombada, o medo vai gerando seu negro lírio de odor nauseativo, que anestesia.
O medo é um vírus mortal!
Ele provoca uma dor física insuportável. Dor de bola de fogo descendo pelo esôfago, queimando as entranhas, perfurando as vísceras, abrindo cavernas na carne viva.
Ah! E o medo também petrifica.Transforma o claro em nós em bruma sólida, em rocha de sal, em marco intransponível. Lágrimas em pedras. Palavras em fósseis. Asas em crostas.
Enquanto escrevo, a sala enche-se de estilhaços de balas e de vidros. De fogo e cinzas. De gritos e lágrimas. O sangue jorra ao meu redor e mancha o tapete da sala onde repousam meus pés descalços. Vejo as marcas que a morte vai deixando. Um último alento, escurecendo o cristal da vidraça, encobre a tarde. Pássaros negros levantam voos sobre a nuvem de estupor que me envolve a alma, feito arame farpado.
Feito arame farpado aprisiona-me dentro de mim. Sim, afinal aconteceu a guerra anunciada. A violência rompeu os diques e inundou nossa rua, o jardim, o alpendre, o quarto, a nossa vida. Surpresa? Não! Torpor. A televisão prossegue nos massacrando com as notícias do dia. Imagens de desolação e violência por toda parte. Sirenes, labaredas, rajadas, estampidos, correria. Por toda parte a cauda materializada do terror e a incerteza se sobreviveremos. Mas, amanhã será um novo dia. Contabilizaremos os vivos e os mortos. Ouviremos as mesmas explicações que não explicam nada e as eternas promessas que jamais serão cumpridas. Sairemos às ruas, o medo grudado ao corpo para enfrentarmos mais uma jornada, feito autômatos. Feito robôs. Sobre as nossas cabeças, a Rosa de Hiroshima abrir-se-á novamente em pétalas de angústia e os mortos cobrirão os céus com suas invisíveis mãos pedindo ajuda…
Ludmila Saharovsky
(Crônica publicada no Jornal O Valeparaibano)
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Conto mínimo: Caixa de Pandora
Todos os objetos daquela casa tinham uma historia, que ela ouvia, muda. Os ícones narravam os inúmeros casamentos, batizados e enterros celebrados na família. O samovar descrevia os invernos rigorosos regados a chá e novidades; as cartas, tantas, diziam das saudades geradas pelas separações inesperadas; as fotos expunham sua genealogia; os tapetes, rotos, as inúmeras viagens pelos continentes, embalando sonhos. Mas, um tímido frasco, descoberto na gavetinha secreta do móvel entalhado em madeira antiga, guardava sua historia hermeticamente fechado. Levou dias para destampá-lo, sem danificar a delicada rolha. E quando o abriu…o perfume liberado fê-la verter tantas lágrimas que, rapidamente, cerrou o frasco, sem forças para reviver aquele enredo.
(Ludmila)
Tão longe, tão perto!
Cenário cultural para inserir Anderson Fabiano – parte I
Conheci Anderson Fabiano, em 1972, no primeiro salão de Arte organizado pelo ADC Embraer. Anderson foi-me apesentado por outro artista plástico, o meu muito querido, Regis Machado. Há que se lembrar aqui, também, dessa figura fantástica que foi Marinho Galvão, então relações públicas da Embraer, que tantos espaços abriu para pintores e escritores do Vale do Paraíba, promovendo concursos literários e Salões de Arte badaladíssimos, patrocinados pela empresa.
Creio que aqueles foram os anos de maior florescimento das Artes Plásticas em nosso Vale do Paraíba. Inúmeras exposições individuais e coletivas aconteciam com frequência espantosa, atraindo um grande público e aquecendo sobremaneira o mercado.
Antes de falar de Anderson Fabiano, vou contar um pouco o que foi a década de setenta para mim, que estava recém chegada ao Vale do Paraíba (mudei-me para Jacareí em 1965)
“No final dos anos sessenta, o engenheiro João Duarte Mauro, irmão do cineasta Humberto Mauro, lotado no CTA (Centro Técnico de Aeronáutica), encantou-se com o movimento artístico do Vale e acabou tornando-se membro do Conselho de Cultura de São José dos Campos. Suas atenções recaíram, sobretudo, em Justino ( que então assinava como “Barra Seca”) de quem tornou-se grande amigo e divulgador. Com seu modo eclético e conhecedor de química industrial passou a orientá-lo na combinação de cores e formas, apoiando-o e o incentivando inclusive na confecção dos grandes afrescos pintados em igrejas da região. O engº Mauro possuía também raros quadros de Gutlich, esculturas de Demétrio e as figuras em barro do genial Sergio, um escultor nômade e esquizofrênico, que ora aparecia e produzia compulsivamente, ora desaparecia completamente do cenário.)
Mais tarde, em 73, seu sobrinho Fabiano Mauro, à frente do Movimento Itinerante Brasil Arte e Turismo, levou Justino, Demetrio e Anderson Fabiano para participar de coletivas no Rio, como no Copacabana Palace, Rio Othon e Hotel Gloria. Numa entrevista ao Vale Paraibano, Mestre Justino colocou J. Mauro como seu grande amigo e primeiro incentivador de fato”. (informações prestadas por Fabiano Mauro Ribeiro)
A Galeria do Sol, de nosso inesquecível agitador cultural Ênio Puccini (Puccini só gostava de arte contemporânea e naife) trazia mostras individuais de artistas já famosos como Sirón Franco, Claudio Tozzi, Alex Fleming, Maria Bonomi, Marcelo Grassman, Carlos Clémen, Takanori, Arriete Chaim, Luiz Beltrame, Cristina Parisi, Carmela Gross, Arlindo Daibert, Leonino Leão, Renina Katz. Cito de memória alguns dos artistas que Ênio trouxe para os vernissages, e que depois levava, impreterivelmente, para a minha casa, para tomar sopa russa e bater infindáveis papos! Ligava pra mim e simplesmente comunicava: “Estou chegando aí com o Luiz Beltrame e o Arlindo Daibert famintos!Tem como você preparar aquela sopa russa pra gente?” Isso, às vezes, a uma hora da manhã…Claro que nem sempre a sopa russa saía, mas sempre tinha algo para se comer, muitas vezes preparado por todo mundo na cozinha! Foi assim que conheci toda essa gente maravilhosa e acabei formando o meu acervo!
Ênio Puccini, que conhecia como poucos a música clássica (era um excelente pianista) fazia na época a Coluna Social do jornal Valeparaibano. Seu “faro” para novos artistas plásticos era infalível, assim, tivemos o privilégio de acompanhar de perto o que acontecia no cenário paulista e brasileiro, bem como a oportunidade de adquirir telas de artistas que hoje tornaram-se ícones da arte contemporânea brasileira.
Aconteciam, anualmente e oficialmente, Salões de Arte Contemporânea e Acadêmica, em Taubaté,em S.José dos Campos e em Jacareí (o famoso SAJA, que não sei porque deixou de ser feito, pois inclusive foi instituido por lei municipal para acontecer a cada ano no aniversário da cidade!) Havia mostras significativas de arte em Guará e em Lorena.
Artistas abriam ateliers para aulas de pintura, desenho, gravura, litogravura, escultura (Hermelindo Fiaminghi, Johann Gutlich, Sonia Oliveira, Luiz Beltrame) Até Arcangelo Ianelli vinha dar aulas em SJCampos! Dona Iraci Puccini, mãe de Ênio, produzia excelentes quadros abstratos feitos com têmpera e nos incentivava a usá-la.
Edna Médici, Eunice Ricco e eu inauguramos o Atelier Artespaço em Jacareí, onde aulas de pintura eram dadas por Eunice Ricco e Mestre Justino. As aulas de desenho ficaram a cargo de Luiz Beltrame, enquanto José Demétrio e, posteriormente, Edgardo Arenas ensinavam escultura. Edna Médici dedicou-se à cerâmica e eu dava aulas de pintura Bauernmalerei em madeira e tapeçaria em tear de pregos. Martha Braga tinha um atelier escola de cerâmica, e João Bosco Costa, tímido, surpreendia a todos com seus desenhos fantásticos. Boscovsky, como carinhosamente eu o chamo desde sempre, ilustrou várias matérias minhas para jornais e revistas, e, posteriormente produziu a capa de meu primeiro livro de poesias eróticas, o “Te Sei”, lançado em !983.
Luis Veiga, Sonia Oliveira, Cidinha Ferigolli, Swoboda, Claudionor Itacarambi, Sóstenes, Kuno Shiefer, Regis Machado, Gutlich, Luiza Irene Galvão, Marta Galotti, Helena Calil, Luiz Beltrame, brilhavam em S.José dos Campos.
Tova Cohen, Osvaldo Pires, Cleuso de Paula, Mir Cambusano, Eunice Ricco, Dalila Brito, Zé Carlos Cruz, Feiz Ahmed, e eu também (fui selecionada e premiada, dentre 2.100 obras inscritas ( 48 selecionadas) no o II Salão Paulista de Artes Plásticas e Visuais do MAM – Museu de Arte Moderna do Estado de SP. com o conjunto de obras “Ensaios Ópticos” bem como em diversos salões importantes de Arte Contemporânea, mas essa é outra historia que fica para uma outra vez…) fazíamos arte em Jacareí.
Anderson Fabiano, Adão Silvério, Carolina Migoto, Guima Pan, Toninho Mendes, Justino, Zé Demétrio, e muitos naifes de qualidade (desculpem se me esqueci de alguém!) agitavam Taubaté, onde também havia um consórcio de quadros, promovido pelo proprietário da Casa Ciranda ( que vendia quadros e molduras). Você pagava uma “prestação mensal” e participava de um sorteio mensal também, de obra do artista à sua escolha, dentro do valor do plano pelo qual optara.
Aldemir Martins, Manoel Santiago, Milton da Costa, Ravanelli, José Pancetti, Quissak Jr., Alice Brill, Justino, Adão Silvério, Anderson Fabiano, Guima, eram os artistas mais adquiridos.
Quissak Jr. e Tom Maia destacavam-se em Guaratinguetá.
J.San Martin e J. Wadie Milad produziam em Pindamonhangaba.
Éramos uma grande, produtiva e criativa família. Um tempo que nunca esquecerei! (Ludmila Saharovsky)
continua no próximo post
Máscaras
Atrás de incontáveis máscaras havia um rosto, ou, poderia dizer-se também, sem medo de errar que, atrás de incontáveis rostos existia uma máscara.
Dilema! Tanto tempo fundidos – as máscaras e os rostos – que era difícil distinguir qual era qual. Indecifráveis, todos lhe pediam exclusividade. Mas, e para além?
Para além, o desconhecido! As trevas encorajavam-na a desvendar definitivamente este mistério de sua existência, enquanto a brisa leve dançava nas cortinas: odalisca envolta em transparentes vestes, chamando-a para a vivência seguinte, como nos contos das Mil e uma Noites.
Ela olhou-se atentamente no espelho, buscando pistas: a pele claríssima, de porcelana. O batom delimitando a boca. E uma lágrima, do olho esquerdo, escorrendo pela face, lenta. Não conseguiu secá-la. Estava impressa. Na máscara? No rosto? Em sua alma? Na reluzente face do cristal?
Apalpou-se com a ponta dos dedos e estremeceu. Sua face não sentiu o leve toque. Aproximou-se mais. Ficou tão junto que percebeu o hálito recobrir o vidro com textura adamascada. Olhou-se fundo, nos olhos e só então percebeu o rosto. Mas ele também não se movia. Estava absolutamente impassível, impenetrável.
Lá fora, a vida, as luzes, as pessoas, as paisagens. Ela buscou, aflita, sua voz na distância. Procurou ouvi-la dentro da noite, perdida entre tantas outras, na esperança de saber-se viva, ao menos pelo som. Não obteve um simples eco em resposta. Quanto esforço para revelar-se! Que espaços necessitava de transpor? Qual tipo de persona procurava? Com qual identidade sairia, inaugurando finalmente, em si, o aguardado enredo? Não conseguira, em tantos anos, assimilar a linguagem híbrida das ruas, a catequese da nova cidade, os signos em constante movimento. Era estrangeira naquele meio. Emigrada de longínquas planícies, tentava, em vão, aprender os costumes dessa terra alheia. Buscava por milagres que não aconteciam, por paisagens frias que derretiam abaixo do Equador, por lembranças que não a resgatavam. Foi quando recorreu à primeira máscara: aquela personagem até que lhe caíra bem! Usou-a por algum tempo, criando à sua volta um novo mundo. Mas, imersa numa realidade que também não lhe pertencia, logo sentiu-se pouco à vontade e experimentou a seguinte. Da qual também se cansou. E assim foi vivendo, de salto em salto, de fantasia em fantasia, de porto em porto, na vertigem de ser sempre outra. E, na magia de reinventar-se, acabou perdendo sua verdadeira face. Ah! E como era difícil reencontrá-la! Quem era ela afinal? Desdobrara-se aos poucos entre tantas latitudes, fugira de olhares que a perscrutavam, da constante curiosidade dos passantes, refugiando-se em identidades, outras. Transportara-se em viagens intermináveis em busca de suas raízes, para além do tempo, num mar de sombras e de espectros. Mas hoje, particularmente agora, sentia-se tão cansada! Olhou novamente para o rosto, aquele, por trás das máscaras e resolveu que chegara a hora de assumi-lo. Estendeu as mãos e tocou com infinito carinho cada marca, cada ruga, cada poro até que finalmente, ele se moveu. Olhou para ela, de dentro do sumidouro do espelho e, retirando toda a pele humana, lhe sorriu.
(Ludmila Saharovsky)
Presentes de Natal
Este ano, no Natal, resolvi presentear meus netos com algo diferente: um livro.
Já vejo a interrogação nos olhos de vocês: “E desde quando um livro é presente diferente?”
Acontece que esses livros são! Eu os criei a partir do universo particular de cada neto e por eles protagonizado.
Parafraseando Rubem Alves, meu muito amado: “Meu sonho fez amor com as folhas e o livro nasceu.” E foi uma experiência incrível!
A ideia veio lá de longe, de minha infância. Estávamos recém chegados ao Brasil. Eram tempos muito difíceis de pós guerra, especialmente para imigrantes, como nós.
Meu avô, para não me deixar sem presente naquele primeiro natal brasileiro, acabou por criar um livro com recortes de fotografias impressas em revistas. De cada revista que encontrava, descartada pela vizinhança, ele aproveitava as imagens mais bonitas. Ele as recortava e colava em folhas, deixando espaços para que, depois, nós interagíssemos, criando nossas próprias histórias. Assim, no primeiro livro que ganhei, começou minha aventura secreta, que não cessou até hoje: Caminhei por jardins da França, castelos da Inglaterra, vivi em casas suntuosas de revistas norte americanas de decoração, corri em parques, naveguei por rios, tive pôneis e carroceis só para mim! Ah…E todas as bonecas dos anúncios! E todas as guloseimas que meus olhos puderam degustar! A cada início de noite, eu e avô deitávamos no tapete do quarto e começávamos nossa aventura daquele dia. Nada, jamais se equiparou ao prazer que este livro me trouxe!
Pois bem, resgatando essas lembranças, resolvi que repetiria a experiência com meus netos, de forma um pouco modificada, pois, nesses tempos modernos, não há brinquedo que eles não possuam!
Passei semanas pesquisando e salvando imagens na Internet (Minha revista de fotos virtuais…)Depois, eu as imprimi, adaptando cada desenho a uma historia mágica que os meninos protagonizariam.
Alecsia ganhou um livro com aventuras em Guararema, onde ela descobriu um unicórnio perdido em meio à mata e, auxiliada pelas labradoras Shiva e Salomé, por trilhas inesperadas, foi em busca de seus pais!
Para Anna Luisa, que mora em Recife, escrevi “A bolsa mágica de Anninha”, que voa e se transforma ora numa barca submarina, ora num balão e a leva para incríveis aventuras. No fundo do mar, Anna conheceu a Rainha das Sereias, e, e sobrevoando as montanhas do Vale do Paraíba, chegou, finalmente, à casa da vovó!
Para MIguel, seguiu a historia de uma menino e seu inseparável aviãozinho vermelho que o leva a visitar todos os primos espalhados do Oiapoque ao Chui, e, em cada lugar eles se envolvem em incríveis descobertas!
Maria Claudia recebeu um livro com o convite trazido pelo bico da gaivota, contendo um mapa para chegar até o Reino do Mar de Dentro, numa ilha secreta, cujo caminho só ela consegue decifrar…
Não sei ainda, se nesse universo de brinquedos eletrônicos e jogos virtuais, meus livrinhos artesanais conseguirão enfrentar a concorrência, mas, de uma coisa eu tenho certeza:
Um dia, lá no futuro, eles serão as testemunhas de que em 2012, uma avó que vivia lá no Vale do Paraíba, inventando historias, documentou para seus netos a necessidade de exercitar o sonho e a fantasia para ter uma vida feliz! (Ludmila Saharovsky)
(Os livros foram feitos em edição limitadíssima, um único exemplar para cada neto, sem valor comercial, por isso usei imagens capturadas na NET para ilustrar as capas. (Ludmila)
Fim do mundo…
Poetas, seresteiros, namorados correi…
É chegada a hora de escrever e cantar/ Talvez as derradeiras noites de luar…”
Profetizam, os videntes de plantão, que nossa terra azul, tal e qual a conhecemos, chegou ao fim. O calendário Maya não mente!
O que eu já recebi de e-mails com informações, instruções, links, mensagens psicografadas por seres intergalácticos e espíritos de luz, encheria a memoria de vários pendrives.
Vamos às informações: No próximo dia 21 de dezembro (daqui a dois dias portanto) o sol vomitará labaredas de fogo tão poderosas que afetarão todos os satélites, motores, geradores, lanternas e faróis. A escuridão irá imperar por três dias. Os satélites cairão sobre a terra, aterrando nossos quintais de lixo sideral. Todas as comunicações serão interrompidas e o desespero será total. O conselho é abastecer a dispensa com alimentos não perecíveis, água, muitas velas e fósforos. E esse será apenas o início do tal do apocalipse.
A par disso, Nibiru, um enorme planeta caprichoso em sua órbita, que cruza os céus a cada 3.600 anos causará com sua passagem, uma inversão de eixos na terra provocando novas acomodações das placas tectônicas e mais ciclones, tsunamis, desmoronamentos. Todas as cidades praianas desaparecerão.
Noruega, antevendo tudo isso, já se antecipou, construindo um gigantesco silo subterrâneo onde armazenou cerca de 100 milhões de sementes e 120 tipos de arroz que preservarão nosso patrimônio agrícola para a nova civilização que aqui surgir.
Milionários do mundo inteiro também já asseguraram sua imortalidade construindo luxuosos bunqueres nos quais irão refugiar-se juntamente com a sua fortuna, na tentativa de sobreviver ao Cáos: os novos faraós enterrados vivos! Que homo os encontrará?
E nós, pobres mortais, homens sem eira nem beira, o que faremos?
Não sei quanto a vocês, mas eu pretendo sentar-me confortavelmente no sofá de minha sala, junto com meus poetas prediletos, uma bela taça de vinho tinto e aguardar com perfeita tranquilidade que se cumpra o meu destino humano, levando como única bagagem minha alma bem lavada…e mais nada!
Nos vemos antes do Natal, com certeza!
Beijos!
(Ludmila)
Não há presente melhor do que nutrir
O baú de minha avó era um pedaço de sua pátria, encaixotada.
Quando as saudades apertavam, ela sentava-se no chão, abria a pesada tampa e começava a revirá-lo em busca de seu passado ali acomodado.
E eu, criança, viajava com ela por tantos objetos enrolados em papel pardo: livros, missais, fotos, cartas amarradas por fitas de veludo já carcomidas e descoradas pelo tempo e por estranhos e mágicos caminhos que se me abriam ali, ouvindo suas histórias.
Lembro-me do cheiro bom que dele se desprendia e impregnava a sala com inusitados aromas. Perfumes que me levavam a bosques frondosos, às nevascas – que a cada inverno cobriam com seu manto branco e macio as praças e suas igrejas – aos vendedores de castanhas assadas em fogareiros dispostos ao largo das ruas, às casas aconchegantes enfeitadas para as festas de final de ano. Nossa! Como era bom percorrer essas lembranças!
Quando eu completei treze anos, em Novembro, a avó retirou desse baú um caderno grosso, de capa ricamente ilustrada e disse que naquele ano ele seria meu presente de Natal. “Mas, que caderno é esse?” Eu quis saber. “No Natal você vai descobrir!”
Passou-se o tempo, e, a cada ano, no Natal eu o redescubro.
Ele é um misto de diário, agenda, coletânea de boas maneiras, e onde estão anotados, também, poemas, pensamentos e receitas.
Sua capa é revestida de linho cor de cereja e traz estampados dois arcanjos gorduchos e nus, folheando um livro de receitas.
Logo na primeira página, as dedicatórias:
“Anna: para que nunca te esqueças que a função mais nobre que há na terra é a de nutrir!
Com amor de sua avó Maria Fiodorovna” (Natal de 1860)
A segunda dedicatória:
“Para Alecsandra de sua avó Ana Barissovna” (Natal de 1911)
E a terceira dedicatória:
“Para Ludmila, de sua avó Alecsandra Dmitrivna” (Natal de 1960)
Em suas páginas eu navego por receitas de licores, compotas, xaropes.
Admiro ilustrações, feitas à mão, de mesas arrumadas com taças e talheres certos para cada ocasião. Leio anotações sobre como preparar um borsh ou uma conserva de pepinos, como retirar manchas de vinho de toalhas, ou como enfeitar a mesa para um almoço festivo. Mas, as receitas que mais me encantam são as de pães e bolos. E, desse meu livro raro, eu presenteio vocês, com uma receita de bolo de natal que eu sempre faço para os meus. Experimentem!
Batam com colher de pau numa vasilha funda, uma xícara de chá de manteiga ( agora tem margarina, se preferirem) com uma e meia xícaras de chá de açúcar mascavo, até ficar uma pasta cremosa. A esse creme acrescentem, sempre batendo, um a um, três ovos com claras e gemas. Depois duas xícaras de chá de farinha de trigo peneirada. Prossigam batendo. A essa massa acrescentem: uma colher de sopa de bicarbonato de sódio, 150 gr. de uva passa deixada previamente de molho em meio cálice de vinho do porto ou de conhaque,( que também é incorporado à massa) 150 gr. de nozes picadas grosseiramente ( no Brasil pode-se substituir por castanhas do Pará) uma maçã grande cortada em cubos, uma colher de chá de gengibre ralado, uma colher de chá de canela em pó e uma colher de chá de cravos amassados. Misturem tudo muito bem. Coloquem a massa numa forma retangular e alta, de pão, ou numa assadeira redonda com furo no meio, untada com manteiga e farinha. Deixem assar em forno pré aquecido por 30 a 35 minutos. Quando esfriar, desenformem e enfeitem com açúcar de confeiteiro, nozes, flores de Natal e outros confeitos a seu gosto. Sirvam com uma bola de sorvete de creme. E pronto!
Não há, na terra, função mais nobre que a de nutrir: de pão ou de carinho!
Feliz Natal!
(Ludmila Saharovsky, crônica publicada em 2008 na Imprensa Valeparaibana)