Lentamente amanhece.
E se a infância viesse até ela outra vez?
E a infância vem, como que atendendo a seu anelo.
Vem, não se sabe de onde, talvez de dentro dela mesma.
Vem, e feito aquele pássaro que regurgita o alimento para saciar a fome das crias, coloca em sua mente a matéria viva da memória.
E ela torna-se então seu próprio sonho.
Memória…um retornar ininterrupto sobre os mesmos passos. Um caminhar sobre rastros indeléveis, sobre pegadas que o tempo não consegue desmanchar naquela terra antiga. Resgate de paisagens recobertas de neblina, e de um céu iluminado tantas vezes por relâmpagos de medo.
Sobrevoar um território único onde se misturam inconfundíveis sons e cheiros. Espanto e descobertas. Invernos e verões. E para onde sempre se retorna, em busca de respostas.
E assim se tece, vagaroso, o conhecido enredo. Poderá mudá-lo? Tenta: Desnuda-se. Queima aquelas vestes impregnadas de vivências. Não as quer mais… São tão pesadas! Em vão! As cinzas que delas resultam, grudam novamente em sua pele e refazem a mesma fantasia. E entre luzes e sombras ela caminha.
Entre dias e noites, entre dúvidas e sobressaltos repassa aquele instante de sua vida: É um pássaro teimoso, voando rumo ao sol,e o amanhecer tão longe ainda! E se fugisse? Mudasse o itinerário? Colorisse as penas? Alongasse as asas? Engrossasse o trinado? Perdesse o norte? Como se construiria seu destino? Conseguiria ser aceita por um novo bando?
Pensa em tudo enquanto vai prosseguindo em seu voo: Ali, campos de trigo, rios , montanhas, um vale imenso, um longo e sinuoso rio. Depois vilas, casas, jardins, quintais com dálias e abelhas. E um ancião sentado, embalando um sono de criança. Ela pára e observa aquele quadro, e uma ternura ímpar a envolve. Aquela cena lhe parece tão familiar! Ah! O aconchego, a nutrição do afeto, a sede saciada. A voz tão conhecida entoando uma velha cantiga de ninar. Confiante ela pousa tranquila naquele ninho e sua alma se aquieta. Um céu azul instala-se entre nuvens e todo o medo e insegurança se dissipam.
Lentamente amanhece e a infância, resgatada, dorme tranquila, em seu regaço.
(Ludmila Saharovsky)