Conto mínimo: Fantasias

Sonhou que era um possante corcel negro lutando contra dragões.
Sonhou que era a princesa flutuando no tapete voador.
Sonhou que era um pássaro de fogo, habitante das Mil e uma noites.
Sonhou…sonhou…sonhou como sempre fazia, enquanto o elevador a deixava no escritório do vigésimo andar
com seus baldes e espanadores para a faxina diária.
“Vamos logo com essa arrumação, princesa!” ouviu a voz do chefe ecoar ao longe, sem que a anelada carruagem se vislumbrasse no corredor! (Ludmila)

     

    Conto mínimo: Para fugir da rotina

    Mal abria os olhos, e já o botão apertado, ligava o televisor.
    Arrumava a casa, ouvindo as primeiras notícias da manhã.
    Lavava a roupa plugada na Ana Maria Braga. Fazia o almoço com as receitas do Universo feminino. Arrumava a cozinha revendo Saia Justa. Cerzia meias sonhando que era Angélica, o corpo escultural, o casamento perfeito. Tomava banho entre dois plim plins e jantava entre lágrimas, torcendo para que Cauã Reymond descobrisse quem era seu pai.
    A rotina perdurou até a noite em que, extenuado, o televisor fulminou-a, com certeiro tiro, na Ultima Sessão Bang Bang. (Ludmila)

      

      Conto mínimo: Sutilezas

      Uma vez por dia, religiosamente, ela levantava-se do confortável sofá e apanhava, da estante, uma caixa entalhada em cedro, repleta de pequenos orifícios.
      Cuidadosamente, retirava dali a víbora, que a picava sempre no dedo indicador, sem deixar vestígios. Entregava-se então ao prazeiroso torpor daquele veneno, administrado em doses homeopáticas, que promovia nela, tenues transformações.
      Deu-se por satisfeita no dia em que, ouvindo as costumeiras reclamações do companheiro, exibiu toda a sua impaciência, chacoalhando, irritada, os sonoros gisos que se lhe afloraram na ponta dos dedos. (Ludmila)

         

        Tempo Submerso

        Pessoas queridas!
        Lanço meu livro Tempo Submerso, a princípio, no Vale do Paraíba, agora nos dias 12 de maio em Jacareí, e em 17 de maio em São José dos Campos. Publico para vocês, a capa e o convite. Ficarei muito feliz em recebê-los e abraçá-los! (Ludmila)

        Capa Ludmila_Tempo Submerso

        Parte I

        Solovietskie Ostrova

        Estou absorta na pequena embarcação balançando sobre as ondas do Mar Branco.
        O vento intermitente e úmido me fustiga. É verão, mas a temperatura de oito graus me obriga a enterrar a cabeça no gorro de lã grossa e a proteger o rosto com o capuz do sobretudo enquanto observo o ocaso naquela madrugada clara, sob o Círculo Polar Ártico. Uma luz difusa ilumina a noite e a transforma num cenário raro. Mal o sol se põe e já se levanta. Assim, dia e noite não se delimitam, ao contrário, alternam-se, sem o contraste de luz e trevas a que estou acostumada. Este espetáculo me fascina: Noites Brancas.
        Percebo que alguém me observa. Viro e vejo, envolta pela neblina, uma mulher que aparenta ter a minha idade. Ela também está só naquele tombadilho. “Vem com os romeiros?”, pergunta. “Não. Não sou peregrina. Venho à procura de meus mortos”, respondo. Ela balança a cabeça num sinal de que entende a razão de eu estar ali. “Mas você não parece russa!”. Sorrio. “E você, vem a passeio?” “Também não. Trago a minha mãe. Ela busca a sepultura de seu pai. Parece que ele foi executado na ilha.” Fitamo-nos, depois, o mar. Assim ficamos em silêncio por algum tempo até ela apontar para uma luz que lentamente se materializava no horizonte: Solovki.
        Meu corpo estremece e a emoção me paralisa em meio à neblina que tão pouco revela. O pequeno espaço é tomado pelos viajantes. Todos querem ter a primeira visão reveladora do arquipélago. Mais um pouco e as cúpulas arredondadas e brancas do Monastério Ortodoxo despontam delineando aquele espaço santo, onde sob o domínio dos Bolcheviques, em 1920, instalou-se o primeiro e o mais temido Gulag soviético. Comoção. Algumas mulheres, com lenços coloridos na cabeça, fazem o sinal da cruz. Outras apertam as mãos sobre o peito. Os homens fumam. Pigarreiam. Tiram fotos. O barco balança muito em meio às ondas vigorosas. Há passageiros que passam mal. O capitão abre caminho e joga as grossas cordas para os marujos que já o aguardam no cais. O alvoroço se instala. Cada um se prepara para deixar a embarcação. Atracamos. Olho o relógio. São três horas da manhã. No mastro, o ícone de São Nicolau sobressai em cores fortes. (Ludmila Saharovsky)


           

          O eterno agora


          A mulher: Olhos perdidos no horizonte. Pensamentos que sobrevoam repetidos naufrágios.
          A mulher: Pele tatuada pelo tempo, sentidos que a arrastam para espaços familiares repletos de alaridos, de cheiros e sabores únicos, quase mágicos, de outrora.
          A mulher: Incrustada no silêncio. Ser clandestino numa cidade que a mantém ancorada na beira dos dias, desejosa de trocar palavras com a leveza com que se trocam carícias.
          A mulher: Vestida de saudades!

          Ela observa a tarde que cai sobre as falésias: o mar cinzento, o céu despojado de nuvens, o repetido mergulho das gaivotas em busca de alimento. Um cão correndo à volta de seu dono, temeroso de perdê-lo. Igual a ela, pensa, retornando sobre seus passos em busca de algum tênue sinal que lhe indique o perdido mar interno.
          Ela retém em si esse momento. Fecha os olhos e o revê, certificando-se de que a paisagem estará sempre dentro dela, mesmo quando, distante, já não puder focá-la.
          E assim, entre o sol que se põe, e o mar que se encrespa, ela viaja. Segue por um itinerário que se sobrepõe ao tempo e à memória. Lembranças de antes desta paisagem tingida pelas cores do crepúsculo. Vestígios de quando tinha asas, e seu pensamento em chamas procurava avidamente a agitação dos sentidos, a certeza de que haveria para sempre um tempo de descobertas. Tempo em que tudo era excessivo, e mesmo assim não lhe bastava. Tempo tão diferente desse, em que viaja vigiando emoções, num ritmo compassado, acompanhando a exatidão da maturidade que pulsa dentro. Buscando não mais a felicidade superficial, mas daquela outra, secreta, que lhe permita encontrar a alegria mais consistente, o existir mais pleno, a emoção mais verdadeira.
          O corpo da mulher segue sem pressa. Corpo nave, entregue à plenitude e ao sonho. Tudo tão próximo e tão distante, e o distante quase na ponta de seus dedos, gravado nas linhas de suas mãos, imerso num feixe de luz e sombras.
          Então, a mulher já não vê mais o mar à sua frente. Apenas o pressente. E regressando pela porta que se abre entre o ontem e o amanhã, ela ancora, tranquila, na eternidade do agora.
          Ludmila Saharovsky
          (crônica publicada no jornal O Valeparaibano)

            

            Contos mínimos: A princesa e o tear


            Proibida pelo rei de afastar-se do castelo, a princesa ganhou um tear para que se distraísse nas tardes solitárias dos imensos salões. E ela teceu a cordilheira. E tramou a cidade além das montanhas. E fiou a longa estrada, pela qual seguiu, puxando atrás de si o fio da urdidura.
            (Ludmila Saharovsky)

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