Contos mínimos: A terceira margem do rio


Aspirando o cotidiano pó do carpete, imaginou que a mancha de umidade proviesse de algum cano furado. Chamaria o encanador, tão logo terminasse a faxina. Em poucos minutos porém, um estreito riacho já percorria a sala. Extasiou-se observando a água crescer em volume. Logo, caudaloso rio dividia a casa em duas margens. As garças não tardaram em surgir, tampouco os peixes. Ao entardecer, preparativos findos, trancou portas e janelas. Armada com os apetrechos de acampar, inflou a canoa e partiu para a outra beira. Mergulhada no deleite da travessia, lembrou-se de que nada dissera à família. Pensou em retornar, mas, seu muro e o jardim já nem se vislumbravam no horizonte.
(Ludmila Saharovsky)

    

    Contos mínimos: Garrafas ao mar!

    De sua solitária ilha, todas as tardes, a mulher enviava mensagens em garrafas atiradas às ondas, na esperança de que fossem encontradas e respondidas.
    A maré, no entanto, insistia em devolvê-las intactas.
    Então resolveu: ela mesma escreveria as respostas e as entregaria ao mar.
    Sentada na praia, o olhar perscrutando o oceano, ela aguarda, ansiosamente,
    pela próxima correspondência trazida pelas águas.
    (Ludmila Saharovsky)

      

      Contos mínimos: A fada


      Todas as noites ela vestia suas roupas de fada e deslizava, leve, pelos bosques de concreto e vidro, até encontrar o quarto onde seu amado dormia. Recitava, então, baixinho, as estrofes do encantamento. Transformada em brisa, apossava-se suavemente dos recôncavos daquele corpo, adormecendo feliz. Então sonhava. Sonhava que despia suas roupas de fada…
      (Ludmila Saharovsky)

        

        Contos mínimos: Menina dos olhos

        Do outro lado do espelho, a menina que me olha, imagina que sou o seu reflexo?

        Temerosa, a menina de meus olhos não aceitou viajar no imenso mar azul, para o qual a sua a carregava.
        Hoje, em vão, vasculha o oceano, mas a latitude perdeu-se para sempre naquele seu olhar!

        Com as lágrimas derramadas fez um delicado colar e o levou de presente para a menina que morava em seus olhos, mas ela, escolada, o recusou.

        Quando a menina de seus olhos viu-se refletida nos olhos dele, encantou-se de tal maneira, que, para conservá-la, ela precisou mudar-se, com urgência, para a sua casa.

        (Ludmila Saharovsky)

           

          Contos mínimos: Detalhes


          Ela o criara perfeito. Não esquecera de nenhum detalhe: a armadura reforçada, os peitorais de aço, o elmo luzidio, a lança forjada pelo melhor ferreiro, o escudo onde rebrilhava a insígnia de sua casa. Presenteara-o com o garanhão negro de rara linhagem. Esquecera-se apenas de uma questão que lhe passara, deveras, desapercebida: A de instruí-lo de que seria ela a dama escolhida à qual dedicaria todas as vitórias, e não a pálida donzela pela qual o cavaleiro, perdidamente, se apaixonou.
          (Ludmila Saharovsky)

             

            Contos Mínimos: Sereia


            Colecionava conchas. Em vidros, caixas, potes ou expostas em prateleiras elas eram dos mais variados feitios, de diversas procedências. A predileta ficava sobre seu criado-mudo. À noite, família recolhida, acostumou-se a dormir ouvindo o barulho das ondas ecoando pelo orifício perolino. A transformação começou lenta. Tênues surgiram as primeiras escamas. Uma fina pele envolveu-lhe os membros inferiores. Os pés alargaram-se numa profusão de cartilagens. Hoje, cercada por corais e cavalos marinhos, ela canta na banheira, enquanto o dia amanhece.
            (Ludmila Saharovsky)

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              Memória marí(n)tima

              Entre o anoitecer e o silêncio, percorro mares da memória, em paisagens de antes, que já não me pertencem.
              A solidão abraça-me e me acompanha. Ela me é necessária pois me transporta a um tempo que eu gostaria de eternizar. Ela preenche meu sangue, dilata-se, bate com seu ritmo compassado em minhas veias, e reanima outros pulsares, inconfessáveis, de íntimas inundações. Assim, sem qualquer resistência, me entrego. Recordar é outra forma de habitar o tempo!
              Súbito, teu rosto amado desliza pelas ondas e me alcança. Essa presença inesperada é como brisa tênue que me envolve. Farol de luz num oceano de tormentas. Perturba-me ainda o ardor, teu corpo curvado sobre o meu ao peso da ternura. Escuto tua voz latejando no centro do que fui, num lugar de praias e gaivotas. Ali eu te guiava, a alma estremecida por tremores, a pele devastada por arrepios, enlouquecida pela intensa vigília a que me obrigavas: ora vinhas do norte, ora do sul, as caravelas trazidas pelo vento. Buscavas em mim os infinitos, a transparência luminosa das manhãs, vôos selvagens, novas correntezas. E eu me abria, sem reservas, ao toque leve de tuas mãos. E, a partir dessas vivências, fomos desenhando a rota para um percurso que guardamos em segredo. Só esqueceste de dizer-me que eu seguiria só.
              Agora, perco-me nesse espaço de memória e vigília, tão dolorida de saudade, no qual a neblina tem o poder de encobrir historias, transformando-as em lembranças.
              Navego sem destino por esse mar de dentro, sem porto nem enseada, perseguindo o que não vivi. Falta-me teu sopro de alegria, teu cheiro, teu gemido. Estremeço, não mais pressentindo a certeza, mas a fragilidade. Aves marinhas ciscam minha alma em busca de um alimento que não possuo. Só seixos, conchas vazias e troncos retorcidos compõem essa paisagem corroída pela maresia. Desde que te exilaste de mim, sou toda calcário e sal. Estátua muda pendendo da proa de um navio fantasma. Olhos vazados intuindo o nascer lento do sol, deixo-me levar pela corrente. E rememoro. Rememoro para alcançar o inalcançável. Relembro, tentando trocar o amor pela memória dele mesmo.
              Relembro, que é meu jeito obsessivo de te reencontrar, navegando nas águas de tua ausência. Finalmente o dia surge, e a dor da tua partida joga-me violentamente de retorno à vida. Por pouco tempo. Sol posto, volto a navegar!
              Ludmila Saharovsky
              (texto publicado no jornal O Valeparaibano)

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