“Le voyageur sans bagage” é o título de algum livro ou peça, nem sei mais de que autor, e que, a cada viagem que faço, recito feito mantra! Ah! Como eu gostaria de ser esse viajante sem bagagem! A idéia do despojamento me atrai, mas, até torná-la um hábito, é longo o caminho. Sempre que planejo uma saída, mudança, um novo início para qualquer atividade, deparo-me com a presença de tantas coisas das quais não mais preciso e, no entanto, não consigo me desfazer! Quanto volume vou acumulando em meu entorno: recortes de jornais, cartas, bilhetes, velhas agendas. Para que as guardo afinal? Devo ter uma dezena de chaves que não combinam com nenhuma porta, caixinha, cofre, mala, baú, mas estão lá, aguardando serventia. Parafusos soltos, arruelas, moedas sem valor, botões, selos, eles formam em casa um sebo tão colorido quanto inútil. Jamais algum botão avulso consegue combinar com o perdido: ou falta-lhe mais um furo, ou o tom é ligeiramente diverso, o tamanho “quase” passa pelo caseado. Assim eles vão para vidros e aguardam por algum milagre que os reaproveite. Também! Não ocupam espaço algum, eu rumino com os meus, bem abotoados! Outro dia resolvi por em ordem as cartas que recebo de amigos. Desfazer-me, quem sabe, de cartões de natal, de aniversário, dos bilhetes escritos pelas crianças,(elas cresceram!) e viajei a tarde inteira! Puxa! A Márcia Argenton, em 68 escreveu-me da Índia, e hoje, por onde andará? Perdeu-se de mim, mas o postal é a prova concreta de nossa amizade de adolescência. Como destruí-lo? Luiza Irene Galvão, e seus cartões tão carinhosos, com palavras amigas que me tocam fundo a alma! Os poemas inéditos de Dyrce Araújo, manuscritos, tesouros de rara beleza! E os bilhetes de Mestre Justino, rabiscados em meio a esboços de futuros desenhos? Como me desfazer deles, se meu querido amigo já se foi, como Guima Pan, que me brindava com cartas de oito, dez páginas praguejando contra os devastadores da natureza? E os envelopes das cartas de Dailor Varela? Só eles valem por toda a poesia concreta que ele já produziu. Chegam cheios de colagens, endereçadas à Ludmila Maiakovsky, coloridos, rabiscados, os selos colados de ponta cabeça. São relíquias para mim. Resultado: Tirei tudo das gavetas, ventilei e reorganizei num fichário que não consigo mais fechar. Fechário! grito, mas ele não me obedece! Mas, voltando ao despojamento, retorno à infância. Meu quarto dividido com o de minha avó, virginiana, ordeira ao extremo, despojada e minimalista em suas posses (depois que duas guerras a deixaram apenas com a roupa do corpo) ela vivia numa simplicidade de monja. Não guardava nada, não se apegava a coisa alguma material: nem roupas, enfeites, plantas ou animais. Apenas seus velhos e amantíssimos ícones, elo de ligação espiritual com a pátria e as fotos dos amigos perdidos tinham importância. Aos poucos eu fui preenchendo todos os espaços com meus badulaques até o dia que ela me disse: Ou você se organiza ou muda do quarto. Mudei! Hoje olho ao meu redor e penso: o que não me fará falta? Oras, tudo é possível de substituir, descartar, doar, trocar, mas eu gosto de casa cheia de lembranças. É meu jeito de interagir com o mundo que me cerca. Só se, Deus me livre, acontecer algum acidente de percurso e tudo sumir, como num passe de mágica! Só assim recomeçarei a caminhada lá adiante, livre e leve, com a roupa do corpo, numa casa pequenina em que meus passos não me levem às flores, à coleção de elefantes, aos Cds, quadros, porta retratos, gavetas, caixinhas, bilhetes, agendas, livros, velhos cadernos de receitas, perfumes, batons, botões, e tantos “trens” que no final, fazem toda a diferença! Sei que é preciso abrir espaços para que o novo entre, mas, sempre tem uma frestinha por onde ele pode se insinuar e depois, há muitas outras maneiras de se treinar o desapego, não é mesmo? (Ludmila Saharovsky)
(crônica publicada no jornal O Valeparaibano)
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Gaia
“Eu estou apaixonado / por uma menina Terra / signo de elemento Terra / do mar se diz Terra à vista / Terra, para o pé firmeza / Terra, para a mão carícia / Outros astros lhe são guia /Terra, terra”… (Caetano Veloso)
Gaia, Geia, Terra, Mãe. Mãe Terra.
Na Mitologia grega, ela nasceu imediatamente depois do Caos, a desordem primordial do Mundo e, sozinha, gerou o Céu, as Montanhas e o Mar. Adorada como divindade pelos antigos, a terra era respeitada como fonte de toda a vida. Em seu ventre fecundo sementes transformavam-se novamente em árvores e frutos. De suas entranhas jorrava a água que aplacava a sede de homens e animais, irrigava plantas, fornecia alimento, permitia desbravar novos horizontes. Em seu louvor ergueram-se templos e se fizeram sacrifícios. Ela sempre ofereceu a seus filhos alimento e abrigo. Passou-se o tempo, e o homem afastou-se do espírito divino que ela encarnava. O pensar científico enterrou a intuição e a comunhão com a terra, até que, em 79, James Lovelock, um cientista inglês, criou a Hipótese Gaia, voltando, de certa forma, às origens, ao afirmar que nosso planeta é um corpo vivo, e que os oceanos, massas terrestres, ar e as distintas formas de vida são seus órgãos. “As condições químicas e físicas da superfície da Terra, da atmosfera, e dos oceanos tem sido, e continuam a ser, ajustadas ativamente para criar condições confortáveis para a presença de vida, pelos próprios elementos viventes. Isto se coloca em sentido oposto ao saber convencional que considera ocorrer o contrário, que a vida adaptou-se às condições planetárias existentes na Terra”. Ao entendermos isso começamos a divagar e a questionar: Se a Terra é um ser vivo, como devemos compreender a Vida? Nós também seríamos uma parte de seu sistema? Há uma grande diferença conceitual entre sermos parte dela ou sermos meramente hóspedes em sua superfície. Hóspedes predadores! E, praticante da escrita que sou, plantadora de sementes/palavras, divago e vou um pouco mais longe, quando percebo que o exercício da agricultura e o da literatura confundem-se. Ambas manejam energias de vida e possuem a mesma função e intenção: Pelo sopro criativo do verbo surgiu o mundo e todas as forças que o compõem. Pela vocação maternal de Gaia, o planeta pode criar, de si, a vida e a natureza.
Pela força viva da palavra, o homem pode disseminar a cultura e compreender a si próprio e à sua primitiva matriz de vida: o barro do qual surgiu. Aliás, a palavra cultura provém do termo latino, “cultus”, utilizado pelos romanos para nomear a ação do camponês de preparar a terra, de criar uma série de condições para plantar sementes que pudessem crescer e florescer. E escrever é apenas outra forma de semear: informações, idéias, conceitos, que no terreno fértil das mentes receptoras, transformam-se em flores e em frutos do saber. Cultivar é um verbo mágico, é um verbo único que obedece a ritos, regras, estações, cuidados e exigências. Obedece, principalmente, aos ritmos imutáveis da vida e da morte. Da terra viemos e para ela retornaremos: útero e túmulo de toda a vida que nela se perpetua.
(Ludmila Saharovsky)
(Crônica publicada no jornal Valeparaibano, SJcampos)
Entrevista
Entrevista de Ludmila Saharovsky
Para o jornalista Dailor Varela
1.Para o que serve a poesia? Você já pensou que a poesia pode ser o ópio do poeta?
LS. A poesia serve para expressarmos o sagrado através da palavra e através dela nos redimirmos. Não. Ópio, como qualquer vício, aprisiona. A poesia, pelo contrário, liberta!
2.Seu último livro publicado foi em 83 (Te sei) Por que tanto tempo sem publicar?
LS. Te sei é meu primeiro livro solo, que foi reeditado três vezes. Fui publicada em diversas antologias, jornais, revistas, postais-poemas, folhetins, no Brasil e também fora dele. Tive meus textos transformados em oficinas de linguagem poética, peças de teatro, balé, teses universitárias, Cds. Por conta deles, ganhei uma Biblioteca Universitária (Faculdade Tereza Porto Marques) batizada com meu nome. Hoje, meus escritos encontram-se espalhados em inúmeros sites e página na Internet e prossigo publicando crônicas em jornais e revistas. Talvez por isso não sinta essa ansiedade em lançar livros, se bem que esteja com alguns prontos.
3.Pelo que conheço de sua poesia, você se inspira tanto no sagrado quanto no profano, com forte conotação erótica, como em alguns poemas do Te Sei e em outros inéditos, como em seu No Útero de Deus, que já tive a oportunidade de ler. Por que esses caminhos tão diferentes?
LS. O sagrado e o profano, para mim são faces da mesma moeda. A Vida surgiu gerada por uma grande energia criadora que se fragmentou em partículas que estão sempre se agregando. Eu entendo o erotismo como essa paixão pelo vir a ser.
4.Da década de 80 para cá, você não acha que o Vale do Paraíba foi vítima de um processo de decadência cultural?
LS. Dailor, a humanidade caminha em ciclos desde que o mundo é mundo. Os tempos atuais são de decadência de todos os valores humanos que aprendemos a respeitar: éticos, morais, sociais, intelectuais. Isso é global e irreversível.
5.Você foi presidente da Fundação Cultural de Jacareí. Foi “expulsa” por não concordar com certas falcatruas da então administração municipal. É uma página da vida cultural do vale que poucos conhecem. Conte pra gente o que aconteceu.
LS. Dailor, sabe aquela antiga e batida frase “águas passadas não movem moinhos?” Pois então! O que acontece na vida da gente, é que os momentos mais difíceis nos servem de reflexão e de parâmetros para descobrirmos quem realmente somos; para aprendermos certas lições e não repetirmos mais os mesmos erros. O que eu aprendi daquele doloroso episódio foi que, infelizmente, não existem administrações municipais, estaduais, federais, eclesiásticas, acadêmicas, hospitalares, desportivas, artísticas, classistas, sem falcatruas. Há sempre um caminho nebuloso e suas ofertas tentadoras de enriquecimento e de poder. O que existe é gente que se vê atraída por ele e o segue. Eu não consigo, não consegui e nem conseguirei compactuar com o ilícito, por isso serei sempre um ET nesses ambientes, ou, se preferir, uma carta fora do baralho de todos aqueles que exercem o poder sem se preocupar com valores que eu professo.
6.Se você encontrasse com Deus, no centro de Jacareí, o que diria para ele?
LS. Pediria que ele desse um grande abraço na Deusa Mãe, sua divina-metade.
7. “Viver é melhor que Sonhar?” como diz Belchior?
LS. Não sei…. “E se formos todos um sonho na mente de um deus adormecido”, como prega a filosofia hindu?
8.Defina solidão
LS. É uma ferramenta imprescindível para a auto-descoberta
9.Tem medo da velhice?
LS. Não. Tenho medo da decadência física e mental, em qualquer idade.
10.Onde você se sente mais livre e solta, na prosa ou na poesia?
L.S. A literatura, em geral, me liberta. Quer criando, quer participando da criação do outro, através de leituras.
11.Pelo menos no Vale do Paraíba, as mulheres são melhores poetas do que os homens. Será que a poesia é feminina?
LS. A poesia é a linguagem da sensibilidade, e a sensibilidade é a linguagem da alma. Talvez, no presente momento, haja mais mulheres exercitando a linguagem poética aqui entre nós, mas tenho muitos amigos, você dentre eles, que são grandes e inspirados poetas.
12.É conhecida sua paixão por Clarice Lispector. O que lhe apaixona mais na escrita dela?
LS. A maneira pela qual ela consegue despir os signos de sua roupagem usual e rebatizá-los com novos e insuspeitáveis significados que nos incitam a transpor seu texto e ir além. Clarice é a mais instigante escritora deste século e, finalmente, está tendo o reconhecimento que merece, no Brasil e além de nossas fronteiras.
13.Você é uma pessoa esotérica. O que lhe faz crer que há vida após a morte?
LS. Creio que é justamente a falta desta certeza que me faz mergulhar nos mistérios da vida e da morte, buscando uma razão para a existência humana. A complexidade do Universo me assusta e me fascina ao mesmo tempo. Viver e morrer são milésimos de segundos nesse Corpo Divino que habitamos. O que me fascina mesmo, é a transcendência!
14.“O inferno são os outros” disse Sartre. O que você acha?
LS. Creio que nós criamos nosso próprio céu ou nosso inferno. Os outros são o nosso reflexo no espelho.
15.E o Céu?
LS. O céu é a liberdade extrema de eu me aceitar como sou, compreender as minhas falhas, perdoar-me e seguir em frente sem medo de errar e recomeçar quantas vezes for preciso, nessa escola que é a vida.
16.A felicidade existe? Como? Quando? Por que?
LS. Felicidade é um exercício constante de praticar a insustentável leveza de ser. É dar conta, a cada dia, com dignidade, de seu fardo. É viver no mundo sem ser do mundo, pois tudo aqui é transitório e nada nos pertence. Como, quando, porquê,não sei definir, mas encorajo cada um a praticar. Vale a pena, e a alma não se apequena!
17.Como você entrou na era da informática? Logo você que tem a letra tão linda?
LS. Ah!Dailor! Como toda e qualquer novidade, a princípio a informática me assustou, depois fomos nos conhecendo, reconhecendo, e hoje não conseguiria mais viver sem o meu computador.
18.Acredita em ET?
LS. E você acredita que nesse nosso universo composto por trilhões de galáxias, somos os únicos seres inteligentes? Ora! seria muita pretensão, para não dizer, ignorância.
19.Você vive, faz tempo, em Jacareí. Defina Jacareí.
LS. Jacareí é minha aldeia, meu mapa, minha geografia. Eu amo esse Vale por onde corre o Rio Paraíba, nosso rio de curvas desnecessárias, mas tão belas; o azul da Mantiqueira que nos emoldura. Amo a Serra do Mar, também tão próxima e altiva. Amo as quaresmeiras, os ipês que enfeitam minha rua. Amo os pássaros que me despertam com seu alarido a cada manhã. Aqui tenho meu mundo, meu lar, meus amigos, meus vizinhos. Aqui eu sou feliz.
20.“A mulher é o negro do Mundo” (Yoko Onno). Você concorda?
LS. Seria bom se fosse, porque Black Is Beautiful
21.Você está se aventurando por um romance. Pode falar-nos algo sobre ele?
LS. Sim, desde que voltei de minha última viagem à Rússia, onde passei quatro meses pesquisando, escrevo “Tempo Submerso”. É uma obra de ficção onde misturo a história de minha própria família, assassinada nos Gulags Stalinistas, e a história mais recente do povo Russo. É um exercício de catarse, dolorido, forte, e ao mesmo tempo tenro e poético. Creio que resultará num livro interessante!
(entrevista publicada no jornal O Grito)
Dailor Varela, sempre abriu espaços generosos na mídia para mim, desde que nos conhecemos, na década de oitenta. Essa, é uma das últimas entrevistas que lhe dei. Um beijo, Dailor e, para sempre, a minha amizade! (Ludmila)
Para Alecsia
Hoje é aniversário de minha florzinha mais linda: Alecsia!
De presente, para ela, transcrevo esse continho que escrevi no inverno, alguns anos atrás. Beijos, beijos, muitos beijos, meu amor! (vovó Lud)
Uma história para Alecsia
Já era de manhãzinha, mas de manhãzinha de julho fria, fria…e o Sol, coberto até o pescoço pelo edredom feito de nuvens fofinhas, não queria saber de levantar!
Levanta, Sol! piaram os passarinhos…
Acorda, Sol! escreveram no céu as borboletas com suas azas multicoloridas, louquinhas para começarem a brincar de esconde-esconde no meio das roseiras…
Cadê o Sol? Ruminaram com suas antenas as formiguinhas, saindo para construir uma nova estrada na grama do jardim. Uma estrada comprida, comprida por onde elas iam levar para o formigueiro um monte de folhinhas, gravetos e sementes.
Acorda. Sol! Latiu a Salomé, buscando um pedaço de chão quentinho para deitar e tirar outra soneca, pois a noite foi cheia de aventuras correndo atrás dos gatos dos vizinhos! Mas, para o desespero de todos, o Sol…. Nada de acordar!
Os girassóis estavam sem poder brincar de roda, o mamoeiro sem tomar seu banho de bronzeamento, as samambaias sem ter como secar suas longas cabeleiras molhadas pelo sereno da noite, e as estrelinhas do céu, cansadas de brilhar, estavam quase desmaiando de sono. O Sol não levanta, reclamavam…sem poder ir dormir junto com o dragão que vive do lado de lá da Lua.
“Vovó, cadê o Sol”, perguntou Alecsia, curiosa, louca para aproveitar o primeiro dia de férias e brincar de casinha no jardim. A vovó se levantou, olhou pela janela e viu o malandrinho do Sol roncando de dar gosto no céu, lá atrás da Mantiqueira! “Mas…o que será que houve”? pensou a vovó em voz alta… “Será que o Sol se resfriou? Será que congelou de frio, já que arder de febre, para ele, não era ficar doente! Ele já ardia todos os dias, senão não seria Sol!” “Ah! Já sei…”disse Alecsia! “Acho que ele foi na festa de aniversário de São João e ficou muito cansado..”.É! Pode ser! Teve fogueira, teve rojão, quadrilha, quermesse… festa a noite inteira!” “É…e eu acho que o Sol foi casar com a Lua!” “Verdade”? “E todas as estrelinhas foram madrinhas…” “E São Pedro?” “Ah…ele foi o padre!” “Ta certo!” “Então vamos deixar o Sol dormir mais um pouquinho, não é mesmo?” “Vovó…ele não está dormindo… ele já está se espreguiçando…olhe lá um bracinho dele brilhando na grama do jardim!” (Ludmila Saharovsky)
Verão II
Verão I
É verão e o calor prossegue materializando cheiros e suores ardentes, embriagando-me de luz. Essa quentura palpável que gruda na pele, que se corporifica numa espera pesada, sem vento, sem clemência, sem frescor, sem uma aragem. Essa estação repleta de pastos queimados de sol e de palavras morrendo de sede dentro da boca. Essa incandescência sem brisas nem concessões à uma sombra amiga, qualquer que seja, de onde quer que venha! Essa febre que me transporta ao deserto de mim mesma, à uma sonolência improdutiva, à dificuldade intransponível que as coisas paradas provocam em nós.
Olho pela janela e pressinto camelos levantando o pó sobre a areia escaldante das dunas, que se multiplicam e multiplicam numa paisagem minimalista. Onde o sonhado oásis? Quem sou eu, me pergunto, envolta neste sudário de linho cru, caminhando em silêncio pelas ondulações arenosas sob meus pés cansados. Eles, que carregam esse pesado fardo de carne e ossos…e, por vezes, também asas! E para onde vou? Existirá um bosque refrescante além desta vidraça? Desse muro? Desse jardim sedento?
Dor? Nenhuma! Apenas a indiferença colorida por tons secos e um sol que, às vezes, é simplesmente um caleidoscópio multiplicando irradiações de tédio e preguiça.
Assim como eu, a tarde indolente também se arrasta, cumprindo um itinerário de esperas. Aguardamos, ambas, que a noite caia e nos resgate, e nos redima, e nos refresque, e nos envolva no estado de graça que traz em si. Ah! Essa leveza, essa bem aventurança de céu que finalmente reflete a luz fria da lua! Um céu repleto de estrelas e constelações. Ele se abre sobre nós e brilha e nos conduz à quietude e ao silêncio, aos sonhos e anelos. Esse céu que nos absolve das angústias e nos permite descansar.
Aguardo a noite ansiosa, porque ela me permite a fuga, ainda que momentânea, de compromissos e rotinas, de desertos e caravanas, de dunas e camelos.
À noite dispo-me de mim. Desfaço-me do peso de meu corpo, de suas tantas sinas e calvários e me permito anelar por rios e lagos repletos de água cristalina. Por garças alvas e peixes azuis. E tâmaras e figos frescos. E riachos e cascatas. E o vento trazendo enfim a chuva benfazeja. À noite impregnada de tantos mistérios, escura e veludosa, eu peço que me acalente e me embale. E, contrariando os instintos primitivos que nos levam a hibernar no inverno, quero adormecer agora, neste interminável verão, e despertar, apenas, quando se fizer, de fato e de novo, a primavera.
(Ludmila Saharovsky)
A cidade que nos tem
Eu acredito que lugares, assim como pessoas, possuem alma e carma.
Eles, como nós, passam pelo ritual de nascimento, registro, batismo. Recebem um nome, um padroeiro, seguem um destino. Crescem, amadurecem, multiplicam-se em ruas, bairros, distritos. Adoecem e são tratadas. Ás vezes adquirem moléstias crônicas, que carregam como fardo, por séculos. Outras, chegam a falecer: cidades mortas. E todas elas ostentam inúmeros perfis: Há as tímidas e retraídas, que recusam-se a marcar presença. Há as festeiras, eternamente iluminadas, produzidas, fervendo de gente. Tem as que não param de trabalhar: dia e noite suas altas chaminés cospem fumaça e fogo pelos ares. Existem as incrustadas em montanhas, glamourosas, com DNA europeu, arquitetura requintada.E há as bem caipiras, de uma só rua, com galinhas ciscando e cavalos pastando livres e felizes por entre as cercas de bambu que separam hortas e casas caiadas. Há as de pele tão seca, que ostentam profundas rachaduras e as que transbordam água, ornadas por rios, cachoeiras e lagoas. Existem as que possuem lendas e mistérios, e outras que desconhecem a própria origem. Tem aquelas cujo solo é santificado por basílicas e milagres, e as simplesmente à toa, sem eira nem beira, sem lei nem justiça. Se nós nos abrirmos para os espaços e aguçarmos nossos sentidos, poderemos perceber com clareza que os lugares comunicam-se conosco, e nós ou aceitamos sua vibração e criamos raízes, ou, simplesmente, passamos ao léu, sem deixar qualquer pegada. As cidades palpitam, confidenciam, reclamam, cobram. Assim como as casas (que também possuem alma) e adquirem, com o passar dos anos, cada qual o jeito e até o cheiro de seus donos, as cidades vão assimilando e refletindo a personalidade de quem as habita, uma vez que somos nós quem lhes outorgamos estrutura, a organização de um perfil particular e uma personalidade própria. As cidades, como as pessoas são dotadas de uma certa independência e livre-arbítrio. Elas tem amor próprio e dignidade. Não é fato raro nem isolado que respondam aos mal tratos que recebem transbordando rios, ruindo pontes, desbarrancando encostas, ou então partindo-se ao meio e recolhendo em suas entranhas toda uma estrutura que a agride, mas, embelezadas com jardins e parques, animais e aves, poesia e arte que lhes alimentam a alma, plasmam em nós o bem estar que emitem. E elas sofrem também de nostalgia. Ah! Aquele solar! Aquele antigo convento! Aquele teatro! É quando vagam por dentro da neblina densa da memória: recordam sons, recolhem confidências, rememoram segredos, resgatam anônimos heróis e amantes e conseguem até contagiar-nos, despertando em nós,sentimentos e emoções latentes. Nestes momentos, afloram em cada um, de maneira inusitada, fortes rompantes de cidadania, que nada mais são, do que uma declaração de amor pela cidade que nos tem. Então, adotamos praças, restauramos prédios históricos, recolhemos tênues sinais deixados por nossos antepassados, engajamo-nos em lutas para salvar um rio, um parque, um monumento, um bairro. Em momentos como estes, homens e lugares reconhecem-se unos. Respeitam-se e interagem em perfeita sintonia. Nestas raras ocasiões, a prosperidade se instala e a humanidade é brindada com épocas de ouro, com obras majestosas que glorificam e celebram a vida, tornando-se sólidas referências para as gerações vindouras. Tudo o que os lugares almejam é que o homem lhes reconheça o espírito e a serventia. Que neles respeite o “anima mundi” que a tudo e a todos permeia. Que os honre, ame e proteja, porque são seu lar.
E há momentos, como esse, em que assistimos, pasmos, as cidades se convulsionarem, abrirem feridas sangrentas, gritarem de dor, revolta e medo, e nós, espectadores assustados, nada podermos fazer, pois sempre chegamos, infelizmente, “tarde demais!”
(Ludmila Saharovsky)
Confidências
Hoje, choquei-me contra a realidade do céu azul
e a palavra que queria dizer-te, espatifou-se em minha boca.
Virou suspiro, virou soluço, virou saliva, virou susto!
De repente, o eixo de marfim que me mantinha centrada neste mundo, equilibrada, equidistante, tornou-se uma espiral de sonhos a atravessar-me, a dividir-me ao meio:
Metade mulher, metade filigrana ornando um camafeu onde observo a estampa de meu próprio rosto.
Sou fêmea na aurora, preenchida por seixos e presságios. Deusas e demônios.
Percebes a metamorfose?
Será que mesmo assim, poderás identificar-me?
Reconhecer-me pelo meu cheiro e gosto?
Perceber esse alarido de pássaros que me atravessa a alma
e se desprende de mim, feito choro de violoncelo e cuíca em contraponto?
Ah…meu coração está repleto de candeias acesas, tochas, archotes, velas,
aguardando um rito nobre que o ressuscite, que o redima…
Estou assim, meio indefesa no universo.
A vida escorre em mim, feito areia na ampulheta: mais um grão…mais um… mais outro,
enquanto vou me consumindo nessa miragem,
abismada em profundezas infinitas…
E esse ruído de tambores distantes enviando mensagens cifradas!
Para que? Para quem? Para mim? Para ti que em mim te escondes?
Mas afinal, de quem é esse destino que se tece assim, à revelia, entre as cordilheiras?
(Ludmila)
texto publicado na Antologia Delicatta, 2011, Editora Scortecci
Deslimites
Um cavalo pasta inscrito na paisagem, indiferente ao mar e aos seus reflexos de luz. Indiferente ao lento deslizar das gaivotas. Sem perceber o colorido dos barcos que navegam por seus olhos. Sem dar-se conta que aqui não existe horizonte. Há muito que céu e mar fundiram-se na neblina…
Há quanto tempo esses barcos, esse mar, esse silencio, esses deslimites?
Pergunto-me e já começo a sentir o desespero agudo da partida. Logo, tudo serão lembranças. Tantos perfis sobrepoem-se-me na memória. Eles como que recobraram seus contornos nessa ilha. E eu tento preservá-los assim, como eram antes do exílio. Antes do tempo de guerra e de fugas. É dolorosa, em mim, essa presença de corpos que criaram asas. Em mim, que continuo presa ao chão. Sei que, por mais que caminhe, jamais chegarei ao recomeço.
Olho então essa paisagem e escrevo. Pudesse eu transformar cada palavra em pedra e deixá-la aqui, pela eternidade, ajudando a compor esse cenário. As dores calcinadas….Todos os dias elas seriam cobertas pelas marés, e o musgo nasceria sobre… e algas.
Olho pela janela de meu quarto. O buquê branco e cheiroso do arbusto no jardim confunde-se com a fina estampa das cortinas. Esse lugar é diferente de todos que já vi. Aqui a alegria é menos urgente, e o tempo corre lento em sua gestação de novos dias. E há contrastes instigantes preenchendo as distancias. E há o vento. Ah… o vento e o repicar dos sinos.
As horas escoaram por mim, e eu, entorpecida, refugiei-me num espaço interno, num tempo suspenso, onde tudo aconteceu como que por dentro. Por dentro da ampulheta que eu desvirava, a areia presa ali, escorrendo de lado a lado, marcando a vida que se plasmava fora. Fora meus passos no labirinto, fora as palavras, as florestas, as paisagens, as pessoas. E eu também, fora de mim, tentando povoar as manhãs com o meu deslumbramento. E agora, nessa véspera de partir, sorvo as distancias, vestida já de luto. Percorre-me um frio estranho. Um frio na alma.
Um cavalo pasta na paisagem, indiferente a tudo!
Ludmila Saharovsky
Diário de viagem/ Anotações/ Véspera de partida
Tanto riso…tanta alegria!
Atrás de incontáveis máscaras havia um rosto, ou , poderia dizer-se também, sem medo de errar que, atrás de incontáveis rostos existia uma máscara.
Dilema! Tanto tempo fundidos – as máscaras e os rostos – que era difícil distinguir qual era qual.Indecifráveis, todos lhe pediam exclusividade. Mas, e para além?
Para além, o desconhecido. As trevas encorajavam-na a desvendar definitivamente este mistério de sua existência, enquanto a brisa leve dançava nas cortinas: odalisca envolta em transparentes vestes, chamando-a para a vivência seguinte, como nos contos das Mil e uma Noites.
Ela olhou-se atentamente no espelho, buscando pistas: a pele claríssima, de porcelana. O riso desenhando tristemente a boca. E uma lágrima, do olho esquerdo, escorrendo pela face, lenta. Não conseguiu secá-la. Estava impressa. Na máscara? No rosto? Em sua alma? No cristal?
Apalpou-se com a ponta dos dedos e estremeceu. Sua face não sentiu o leve toque. Aproximou-se mais. Ficou tão junto que percebeu o hálito recobrir o vidro com textura adamascada. Olhou-se fundo, nos olhos e só então percebeu o rosto. Mas ele também não se movia. Estava absolutamente impassível, impenetrável.
Lá fora, a vida, as luzes, os ruídos… os blocos, as escolas, as pessoas. Tudo em movimento. Ela buscou , aflita, sua voz na distância. Procurou ouvi-la dentro da noite, perdida entre tantas outras, na esperança de saber-se viva ao menos pelo som. Não obteve um simples eco em resposta. Quanto esforço para revelar-se! Que espaços necessitava de transpor? Qual tipo de persona procurava? Com qual identidade sairia, inaugurando finalmente, em si, a festa? Não conseguira, em tantos anos, assimilar a linguagem híbrida das ruas, partilhar da alegria geral, soltando-se, suando e sambando. Era estrangeira naquele meio. Emigrada de longínquas planícies tentava aprender em vão os costumes desta terra alheia. Buscava por milagres que não aconteciam, por paisagens frias que derretiam abaixo do Equador, por lembranças que não a resgatavam. Foi quando recorreu à primeira máscara: aquela personagem até que lhe caíra bem! Usou-a por algum tempo, criando à sua volta um novo mundo. Mas, imersa numa realidade que também não lhe pertencia, logo sentiu-se pouco à vontade e experimentou a seguinte. Da qual também se cansou. E assim foi vivendo, de salto em salto, de fantasia em fantasia, de porto em porto, na vertigem de ser sempre outra. E, na magia de reinventar-se, acabou perdendo sua verdadeira face. Ah! E como era difícil reencontrá-la! Quem era ela afinal? Desdobrara-se aos poucos entre tantas cidades, fugira de olhares que a perscrutavam, da constante curiosidade dos passantes, refugiando-se em identidades, outras. Transportara-se em viagens intermináveis em busca de suas raízes, para além do tempo, num mar de estrelas e constelações. Mas hoje, particularmente agora, sentia-se tão cansada! Olhou novamente para o rosto, aquele, por trás das máscaras e resolveu que chegara a hora de assumi-lo. Estendeu as mãos, tocou-o com infinito carinho, até que finalmente, ele se moveu. Olhou para ela, de dentro do espelho e, retirando toda a pele humana, lhe sorriu.
(Ludmila Saharovsky)