Solovky é um arquipélago de muitos espectros. Nele, cada pedra, cada trilha, cada lago são testemunhos de que a evolução humana é um percurso de dor e medo. Sua geografia, delimitada pelo assombro, contem o presente como se fora o desenho de uma paisagem dentro de outra, milenar. E pedras sobrepõem-se a pedras, feito almas calcinadas. Ali, a historia foi escrita, desde sempre, pelos mortos. Os vivos não passaram de fantasmas, de coadjuvantes, num roteiro composto de lágrimas e sangue.
A paisagem, soberana, tira o fôlego: florestas frondosas emolduradas por lagos calmos e transparentes, o solo de turfa e o céu infinitamente azul. As pedras roladas, trazidas pelo degelo dos icebergs recebem o nome de peregrinas. Pedras peregrinas. Estão presentes, nos mais variados tamanhos, em toda parte. Sobrepõem-se na construção das muralhas, dos templos, silos, canais, aterros, dumbas.(3) Acomodam-se na pavimentação das estradas seculares, nos degraus escavados em meio às montanhas, na sustentação dos imensos crucifixos votivos.
Há três mil anos a.C. foram dispostos em labirintos que se conservam inalterados até hoje, a céu aberto. Explicam os arqueólogos que eles delimitavam áreas de sepultamento entre os povos primitivos que por ali passaram: os finlandeses, os suecos, os noruegueses, que deixavam enterrados, naquele final de mundo, olhando para o mar, os seus mortos. As almas presas naquelas armadilhas circulares não tinham como retornar para assombrar os vivos e assim permaneceram por séculos, atraindo sempre para seu território, outros mortos. (Ludmila Saharovsky)
Foto de Irina Orlova
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Pedras de Vigília
Que mistério tem Clarice?
Leio nos jornais que a obra de Clarice Lispector está sendo discutida em Nova York, quase 28 anos após sua morte ( dez.1977). Clarice, essa criatura linda, misteriosa e intensa, transmitiu-nos através de seus escritos, conceitos que possibilitam inúmeras interpretações pessoais, de acordo com nossas próprias idiossincrasias, dos mistérios da vida. Eu a conheci num longínquo janeiro de 1972 ( ou seria 73?), sentada numa pracinha, no calçadão do Leme, o olhar perdido no horizonte. Foi assim: Todas as férias de verão, passávamos, eu e as crianças, em Copacabana, no apartamento da família. Explorar as inúmeras livrarias, garimpando exemplares pela sonoridade dos títulos, tornou-se uma deliciosa rotina de todas as tardes, através da qual acabei conquistando a amizade de um livreiro. Foi seguindo sua orientação que adquiri o livro “Felicidade Clandestina” e comecei a leitura naquele mesmo dia, enquanto as crianças brincavam ao meu redor à sombra esparramada de um “chapéu de sol.” O conto, “O ovo e a galinha” me surpreendera. “De manhã, na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo…O ovo não tem um si mesmo. Individualmente ele não existe. Por isso a galinha é o disfarce do ovo…” Que loucura! pensei. Fechei o livro, tentando assimilar aquele significado e só então me dei conta de que, do banco ao meu lado, uma mulher me observava. Gostou do livrro? Perguntou-me, carregando nos erres. Ainda não sei. Acabo de comprá-lo. Tem uma linguagem diferente de todos os que tenho lido. E o que gosta de lerr? Gosto de Osman Lins, de Nélida Piñon, da poesia de Hilda Hilst. Gosto de escritores que inovam a linguagem, prossegui, animada em poder fazer-lhe algumas confidências. (Porque será que confidenciar a estranhos é sempre mais fácil?) Sabe, eu comecei a escrever crônicas para o jornal de minha cidade, então vou aprendendo com esses autores, uma nova maneira de dizer as coisas… Isto é ruim, disse-me ela . Você só se transforma num bom escritor quando perde o medo de expor suas próprias idéias, quando aprende a contar sua história com suas palavras. A senhora é professora de literatura? perguntei . Não. Sou Clarice Lispector. Escrevi o livro que você está lendo. Olhei-a com atenção e espanto. Uma mulher de pele muito alva, o rosto marcado por uma cicatriz de queimadura. Magra. Os olhos claros num corte oblíquo refletiam um olhar triste. A voz grave, de fumante. Bonita? Não diria… Feia? Também não! Uma mulher forte, de presença marcante. Ao saber quem era, intimidei-me. Creio que era a primeira vez em que me deparava com uma escritora, assim, olho no olho, cuja obra eu ainda desconhecia. Como prosseguir a conversa? Passado algum tempo em silêncio, ela levantou-se e despediu-se, dizendo mais para si mesma, do que para mim: Escrever é olhar as velhas coisas com novos olhos. Boa sorte! Nunca mais a vi. Voltei inúmeras vezes àquele banco, perguntei por ela na vizinhança. Ninguém soube me dar qualquer informação, mas, a partir daquele encontro, algo em mim se modificou. Tornei-me sua leitora voraz. E assumi seus conselhos. Há trinta anos venho me expondo nas páginas de revistas e jornais, numa relação de troca com vocês, leitores, nesta feliz triangulação amorosa entre autor, texto e leitor e agradecendo sempre à Clarice por este aprendizado. ( Cronica Valeparaibano/2005) (Ludmila Saharovsky)
Matéria de sonho
Lentamente amanhece.
E se a infância viesse até ela outra vez?
E a infância vem, como que atendendo a seu anelo.
Vem, não se sabe de onde, talvez de dentro dela mesma.
Vem, e feito aquele pássaro que regurgita o alimento para saciar a fome das crias, coloca em sua mente a matéria viva da memória.
E ela torna-se então seu próprio sonho.
Memória…um retornar ininterrupto sobre os mesmos passos. Um caminhar sobre rastros indeléveis, sobre pegadas que o tempo não consegue desmanchar naquela terra antiga. Resgate de paisagens recobertas de neblina, e de um céu iluminado tantas vezes por relâmpagos de medo.
Sobrevoar um território único onde se misturam inconfundíveis sons e cheiros. Espanto e descobertas. Invernos e verões. E para onde sempre se retorna, em busca de respostas.
E assim se tece, vagaroso, o conhecido enredo. Poderá mudá-lo? Tenta: Desnuda-se. Queima aquelas vestes impregnadas de vivências. Não as quer mais… São tão pesadas! Em vão! As cinzas que delas resultam, grudam novamente em sua pele e refazem a mesma fantasia. E entre luzes e sombras ela caminha.
Entre dias e noites, entre dúvidas e sobressaltos repassa aquele instante de sua vida: É um pássaro teimoso, voando rumo ao sol…e o amanhecer tão longe ainda…E se fugisse? Mudasse o itinerário? Colorisse as penas? Alongasse as asas? Engrossasse o trinado? Perdesse o norte? Como se construiria seu destino? Conseguiria ser aceita por um novo bando?
Pensa em tudo enquanto vai prosseguindo em seu vôo: Ali, campos de trigo, rios , montanhas, um vale imenso…Um longo e sinuoso rio. Depois vilas, casas, jardins, quintais com dálias e abelhas. E um ancião sentado, embalando um sono de criança… Ela pára e observa aquele quadro, e uma ternura ímpar a envolve. Aquela cena lhe parece tão familiar! Ah… o aconchego, a nutrição do afeto, a sede saciada. A voz tão conhecida entoando uma velha cantiga de ninar. Cofiante ela pousa tranquila naquele ninho e sua alma se aquieta. Um céu azul instala-se entre nuvens e todo o medo e insegurança se dissipam.
Lentamente amanhece e a infância, resgatada, dorme tranqüila, enquanto um outro pássaro, adulto e sereno, voa feliz!
(Ludmila Saharovsky, crônica publicada no jornal Valeparaibano)
De luz e sombras
É maio, novamente, e a lua cheia inunda meu jardim de claridade. Esta lua prenhe no céu deixa-me de alma inquieta. É como se uma vertigem a tomasse. Vertigem….
Vertigem…repito para mim mesma! E o som desta palavra reverbera em minha boca e me atira num infindável labirinto interno. A casa dorme. Dormem a rua e a cidade. Só eu, insone, giro em torno da lua, de mim mesma, no vazio. Vazio… Existirá o vazio? Um vazio absoluto… imóvel, pleno de si mesmo…Que idéia assustadora! Mas, a noite acalenta-me e me instiga com seus mistérios…Tantos! Ah! Como seria bom se um simples uivo resolvesse as questões complexas da existência! Um longo uivo, de loba ancestral admirando e homenageando a lua. Fatigada das rotinas do dia, olho para este céu, mar de sombras pontuado de estrelas e nele busco refúgio: Imagino a elíptica na qual se inserem os planetas e no espaço habitado desde sempre por deuses e deusas de todas as religiões, de tantas mitologias, com seus fabulosos séquitos de seres zodiacais, anjos, demônios. Aprumo a vista. Quero enxergar além. Além das Moiras que vão tecendo meu destino. Além de Castor e Pólux. Além do Minotauro, de Urânia, de Hércules e Hidra. Além do paraíso das escrituras. Além!
Tantas constelações e eu, tão pequenina! Tanto movimento, e eu tão quieta mergulhada nesse silêncio denso, quase palpável! Penso na sincronicidade que temos com os astros, e que já nem se discute mais. Ela é uma certeza que profetas e poetas possuíam antes que a ciência, incrédula, descobrisse o Tao da Física. Mas, o que eu busco no céu, na verdade, é a mais bela das constelações. Aquela de que mais gosto, independente de encontrar-se sempre oposta à de Escorpião, à qual pertenço. Aquela que traz Órion ao lado de seus cães e das Três Marias, ou se preferirem, dos Três Reis Magos. Busco e não a encontro. Deve estar visível nos céus de outro hemisfério, onde agora é primavera. Como explicar-lhes, que esta noite eu queria tanto, ser apenas uma estrela menor do cinturão deste Divino Caçador? Ser um sinal de luz, sem interesse próprio, sem medo nem vaidades, na imensidão deste oceano de estrelas, onde reina, grandioso e inatingível, o vento.
(Ludmila Saharovsky)
Crônica Publicada no Jornal O Valeparaibano
Útero de deus
Eu escrevi esses poemas há muitos anos, na década de oitenta, quando minha mãe partiu. No início, o livro que os contem chamava-se Anatomia da Morte, e era dividido em três tempos: Tempo do medo, da contemplação e da entrega. E o tempo passou e esses tres períodos fundiram-se e confundiram-se em mim. Então, reescrevi a maioria dos poemas e rebatizei o livro como No útero de deus. Para mim, esse título metafórico representa a exata percepção que eu tenho da divindade: um pai/mãe que criou de si toda a vida, e que, amorosamente, aguarda a volta de cada filho pródigo ao lar.
Quando esse trabalho ainda era Anatomia da Morte, foi estudado e representado por um grupo de jovens que faziam teatro de bairro em SJCampos, acompanhados por Dirce Araújo. Depois, ele foi usado como tema para a dissertação de graduação na FASC Faculdades Santa Cecília, de Pindamonhangaba, por um integrante desse antigo grupo, Roberval Rodolfo. Roberval tornou-se ator e diretor. Posteriormente, em 2004, sob a coordenação do prof. Marcelo Dênny de Toledo Leite, prof. do departamento de Artes Cênicas da ECA/USP, Roberval o transformou em peça de dramaturgia. No útero de deus foi apresentado no Paço das Artes, dentro da Cidade Universitária em S. Paulo, e também em algumas cidades do Vale do Paraíba. O livro prossegue inédito. Transcrevo para vocês, alguns poemas dos quais gosto muito. São cânticos numerados, sem títulos.
I
Teu hálito
Permeia-me
Enquanto me esvazio
E celebro pactos
De dor e esquecimento
Teu útero
Expele-me no mundo
E eu choro
Na noite densa
Essa ausência
Que não nomeei,
Ainda!
II
Recomeço
Teorema de carne e sangue
Conforme ordenaste
Multiplico-me
E salgo a terra
Fora de ti
Encontro apenas
Lembranças fugidias
Repletas de silêncios
E o palpitar de teu nome
Que não ouso pronunciar
Sozinha
VI
A morte vai seguindo
E no caminho
Não há sequer um visgo
De seu rastro
Apenas
Meu ser latente
Arquetipado na memória
É sua rota
E minha trajetória
X
Além do opaco
A treva
E em mim
A mais complexa
Impenetrável rota
A noite oculta.
No mar revolto
A morte: ilha de breu
Cauda de horror
Corpo à deriva
A morte:
Último brilho
Sobre a alma altiva.
XVII
A ânsia do Eterno
Trespassa-me qual flecha
Relâmpago incontido
Iluminando trevas
Mas o ventre da noite
Absorve-me úmido
Matriz que molda
O esquecimento
Da luz?
Apenas um pulsar
Imperceptível…
XX
Feito concha
Que contem
O eco das marinhas
Guardo-os em mim
Pai, Mãe, Filho,
Santo sopro de vida
E com essa singular
Arquitetura de ossos
Faço o seu ninho.
XXIII
Quero que me cubras
De terra fresca e fértil
Então,flores nascerão de mim
Feito palavras
E transmutada
Em frutos e sementes
Renascerei em ti
Vestida de primavera.
(Ludmila Saharovsky)
Poesia inspira espetáculo
A peça ‘Utero de Deus’, baseada na obra de Ludmila Saharovsky, será apresentada hoje no CET, em S. José
São José dos Campos
A Cia do Trailler, de São José, apresenta hoje, às 19h, no Centro de Estudos Teatrais (CET) a peça “Útero de Deus” baseada na obra poética de Ludmila Saharovsky. A apresentação faz parte da programação da Semana do Teatro organizada pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo.
O espetáculo “Útero de Deus” é a única peça do evento que traz o gênero performático. O estilo surgiu nos anos 70 para romper com a arte tradicional. O gênero é marcado por ações espontâneas que incorporam técnicas do teatro, da mímica, da dança, da fotografia, da música e do cinema.
Segundo o ator André Ravasco, quem for à apresentação deve se preparar para viver sensações diferentes. “Este é um espetáculo interativo, não tem o formato tradicional. O público faz parte integral da encenação. Nós trabalhamos muito os sentidos e as sensações”.
O espetáculo foi desenvolvido a partir da apropriação da poesia com a redação para cena. O texto é extraído do livro que leva o nome da peça, que traz a morte como tema central. “Tudo está pautado nos quatro elementos ar, terra, água e fogo”, disse o ator.
Para reforçar a idéia destes elementos, a peça conta com quatro espaços diferentes, onde o público e os atores transitam. Ao todo são seis atores em cena que usam da linguagem aguçada nos sentidos e as performances cênicas para atrair a atenção das pessoas para celebrar esta passagem inevitável ao ser humano: a morte.
O grupo está com a peça em cartaz há dois anos. Segundo Ravasco, mesmo com o tempo de estrada o espetáculo não é fechado e sofre mutações no decorrer dos anos. “Estamos em constantes transformações”, afirmou. Em novembro do ano passado o grupo realizou dez apresentações da peça no Festival de Teatro de Pindamonhangaba.
(Publicado no Jornal Valeparaibano em 2005)
Reflexão
(foto de Nicolas Valentin)
Quem sou eu? Ninguém mais se define como a energia que permeia a forma. Ninguém se reconhece como a semente que se fez corpo composto por terra, fogo, água e ar. Por luz, cor e fantasia! Não! Isso é tão pouco! Hoje tornamo-nos, todos, reféns de substantivos que nos nomeiam. De adjetivos que nos qualificam. De frases que nos ampliam e corrompem, e de discursos vazios que não nos levam a lugar algum, só nos confundem! (Ludmila Saharovsky)
Pássarospalavras
Tempo Submerso
Tempo Submerso é meu primeiro livro de fôlego. Eu o escrevi na Rússia, no arquipélago de Solovietskie Ostrova, embaixo do Círculo Polar Ártico, onde fiquei 4 meses. É a história do primeiro Gulag criado em 1922, para onde foram mandados meus bisavós paternos, após a Revolução Bolchevique, e onde todos foram assassinados por ordem de Stalin. Não é um livro autobiográfico, mas tem muito de nossa história familiar, encaixada nesse período tenebroso da Cortina de Ferro. Pretendo publicá-lo em breve. Ele contem fotos, documentos, entrevistas inéditas e muita história.
cap VI
As crianças dos Gulags
O tratamento para as mulheres presas no Gulag de Solovky era muito mais rígido do que para os homens. Pelo severo regimento do antigo monastério, cuja tradição permaneceu inalterada, mesmo com os templos transformados em prisões, a entrada das prisioneiras nas construções principais e seus arredores era terminantemente proibida. Em vista disso, elas eram encaminhadas para outras partes da ilha onde ficavam em campos isolados por três cercas de arame farpado. Seu transporte para as frentes de trabalho nas lavanderias, olarias e regiões de extração e manuseio da turfa era feita em comboios fortemente vigiados.
A rotina nos campos femininos era muito extenuante. Mulheres de várias classes sociais, com educação, instrução, usos e costumes absolutamente diversos eram agrupadas aleatoriamente, encontrando sérias dificuldades em se adaptarem à vida em barracos coletivos.
Prostitutas, vendedoras de cocaína, contrabandistas, assassinas, ladras eram colocadas junto com aristocratas, professoras, cientistas, donas de casa, o que gerava um clima de permanente confusão e revolta.
A necessidade de criar-se algum alento, algum tênue espaço para sonhos nesse cenário de dor e sofrimento fazia com que romances entre os prisioneiros proliferassem e, “apesar do forte esquema de segurança imposto”, os contatos físicos aconteciam, e, em decorrência deles, também a gravidez.
Em pouco tempo, um dos grandes problemas do novo regime bolchevique passou a ser a quantidade de crianças que nasciam nesses campos. A grande maioria das mulheres que engravidavam era constituída por criminosas profissionais. As futuras mães, que no início eram poupadas dos trabalhos mais pesados, recebiam uma alimentação melhor, e também se beneficiavam de anistias que, muito raramente eram concedidas às mulheres com filhos pequenos. Mas, nem todas engravidavam nos campos. Muitas chegavam a eles grávidas, apartadas de seus maridos, condenados como “inimigos do povo”. Enviadas para trabalhar em diversas frentes, para as quais não podiam levar seus bebês, eram obrigadas a deixa-los aos cuidados de outras, mais velhas e afastadas dos trabalhos por doença. Essas babás improvisadas não possuíam qualquer responsabilidade nem paciência com os pequenos, aproveitando-se da situação para furtar e comer a fração de alimentos que lhes era destinada, abandonando-os em qualquer canto, sujos, famintos, doentes. Em vista disso foi necessário criar nos Gulags, junto aos alojamentos femininos, também berçários, que, no entanto, revelaram-se de pouca serventia, pois os problemas de doença e mortalidade prosseguiram. As mães que amamentavam eram liberadas de quatro em quatro horas, pelo período de 15 minutos. Voltando ao trabalho eram acompanhadas pelo choro desesperado de suas crianças ainda esfomeadas, envoltas em trapos, sujas, cheias de feridas, piolhos e percevejos, que permaneciam abandonadas, sem um gesto de carinho, sem o conforto de um banho e sem sol. A falta total de assistência médica e mesmo de remédios básicos respondia pelos óbitos freqüentes. Aos poucos o choro dos pequenos era substituído por fracos balidos, até que a inanição também os aniquilava. As mães podiam permanecer com seus bebês até que esses completassem um ano e meio, quando eram enviados para os orfanatos na certeza de que nunca mais se encontrariam.
“Nos orfanatos a situação era desesperadora. Para lá eram encaminhadas crianças de todas as idades e todas as proveniências: filhos de presos políticos, dos Kulaks (22), crianças órfãs das diversas guerras, os bezprezornie (23) os filhos dos ciganos, presos por vadiagem, os enjeitados, os fugitivos. Deixados sem qualquer supervisão nem atividade, havia inúmeros casos de estupro dos maiores que sodomizavam os menores, espancamentos, fome, dor, desespero, desesperança….Minha mãe que trabalhou num desses orfanatos relatou-me que vários jovens desenvolveram comportamentos esquisofrênicos, como por exemplo, passar dias a fio batendo com a cabeça na parede, e não pararem nem com o sangue escorrendo por suas faces…Outras, desenvolviam uma espécie de ausência, permanecendo com o olhar perdido em algum ponto do infinito, sem comer, sem beber, sem dormir…até tombarem mortos para o lado… Essa dor, essa vergonha, nós carregaremos para sempre !”
(depoimento dado por uma moradora de Solovky que pediu para não ser identificada)
“Muitas mulheres eram estupradas pelos membros do partido comunista, após seus maridos serem enviados aos campos, condenados por conspirarem contra o governo. Muitos, inclusive, eram considerados culpados, unicamente por terem uma esposa bonita e desejada. As que engravidavam desses estupros eram mandadas para os Gulags femininos de Solovky. Inúmertas tentavam abortar em condições precaríssimas, introduzindo pedaços de ferro dentro do útero, sofrendo hemorragias e infecções que as levava à morte. As que sobreviviam eram castigadas por esse ato, com o isolamento na temida Ilha dos Coelhos (Zaitchiki). Nuas, famintas, acabavam morrendo sem qualquer assistência ou matando e comendo os filhos indesejados. Essas notícias chegavam até nós, moradores dessa ilha, relatadas pelas guardas, com as explicações de que “as inimigas do povo” não mereciam viver, pois não eram humanas, não tinham o menor instinto maternal”
(depoimento da mesma moradora)
(22) Kulak: apelido dado aos camponeses prósperos ( às vezes, ter uma vaca era considerado ser próspero) que também foram perseguidos pelo regime
(23) Bezprezornie: jovens de rua, pequenos delique, em sua maioria órfãos ou crianças que fugiram de suas casas por conta da fome e/ou da falta de cuidados dos pais.
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Olho Solovki e sua geografia entalhada pela dor e pelo medo. Olho suas estradas centenárias que serviram de passagem da vida para a morte.
Olho para o céu noturno, a constelação de Órion sempre presente, e me pergunto se as estrelas, como as nossas retinas, podem ser impregnadas pelo halo dos espectros, ou se apenas os refletem em meio à neblina…
Olho para a pequenina ilha dos Coelhos e imagino o que sentiram as dezenas de mulheres estupradas e grávidas que lá foram deixadas, completamente nuas no inverno, sem mantimentos, sem assistência, sem explicações… O que se passou em sua alma?
Forçadas pelas circunstâncias a comer seus filhos natimortos, num ritual macabro de fome e desespero equiparados às fêmeas de outras espécies, que devoram as placentas e os filhotes fracos, para preservá-los do sofrimento e de sua inadequação àquele mundo: Os sentidos confundidos pela loucura, pelo terror, apenas o instinto de sobrevivência se perpetuando….Quem pode imaginar o que experimentaram? Em que abismos internos mergulharam? Quem acudiu seus gritos de dor e desespero? Quem presenciou seu completo abandono? Sua regressão à irracionalidade? Sua morte lenta em completa degradação?
Caminho entre as pedras que recolheram também suas pegadas e me pergunto: Como, meu Deus, pedir-lhes perdão? Como consolá-las, abraçá-las, agasalhá-las, limpar o sangue de suas mãos e seus cabelos, confortá-las, tentar fazê-las compreender que um grave desvio de comportamento pode transformar o homem nesta besta virulenta, sádica e insensível ao sofrimento humano.
Entro na gélida capela de pedras onde elas se recolhiam para fugir às tempestades de neve e de vento. Onde elas deitavam-se umas sobre as outras, na tentativa de se aquecerem e, pela manhã, as que permaneciam por baixo amanheciam mortas, congeladas. Penso em seus corpos retirados e deixados sob a neve. Na primavera, com o degelo, eram carregadas para o mar. Mar Branco…Que ironia…..
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Não! Eu não conseguia dormir após ouvir estes relatos feitos pelos guias e fazer as anotações em meu diário improvisado. Caminhava então, lentamente até o cais e olhando para aquele horizonte feito de água que me rodeava, ficava imaginando ossos humanos trazidos até mim pela maré. Longos ossos carcomidos pela areia e água salobra invadiam meus pensamentos enquanto eu regressava ao quarto que alugara, na Rua Severnaya,16, com vista para o mar. Sentada defronte à escrivaninha, uma densa névoa me envolvia e eu mergulhava num torpor…numa espécie de túnel sem saída. Vagava pelo passado buscando explicações que não havia, que nunca haverá, e escrevia. Plasmava no papel as emoções que me invadiam em ondas inquietantes e me povoavam com espectros
Não só os homens tem um destino traçado. As nações também.
(Ludmila Saharovsky)