Tenho por hábito recortar e guardar matérias de jornais e revistas que, de alguma forma, me sensibilizam. Tenho em casa um arquivo enorme de papéis amarelados pelo tempo, conservados em pastas, dos quais não consigo me desfazer. Reler esses textos me inspira, faz-me refletir sobre o cotidiano, me enternece, às vezes, outras, me entristece. Abro as dobraduras, revejo o conteúdo dos escritos, dobro novamente e torno a arquivar.
Semana passada repeti o ritual e, como de costume, separei a matéria de um grande jornal que falava sobre o “personal amigo”. Nela, o articulista me informava de que surgiu uma nova profissão. Você paga uma taxa, que varia entre R$100,00 e R$500,00 a hora, contrata o serviço e recebe a atenção de uma pessoa especializada em atenuar a sua solidão! E com uma ressalva: O personal amigo só lhe faz companhia. Nada de namoro ou sexo! É pura e simplesmente amizade!
São novos tempos! Novas relações! Novas formas de suprir carências. As pessoas passam cada vez mais tempo na Internet. Abrem-se com desconhecidos. Participam de mil e uma comunidades: face, whatsApp, twitter, repartem confidências, criam dependências, matam o tempo, mas, no final das contas, por melhor que seja “teclar” com alguém, amigo tem que ser de carne e osso. Amigo é para ter-se ao lado, poder pegar na mão, chorar no ombro, dialogar sentindo o hálito, olhando nos olhos, conversando ao vivo, entendendo melhor a si mesmo e ao mundo, pela visão do outro.
O espaço virtual, sem dúvidas, nos protege, abre inúmeras fronteiras, possibilita falar em tempo real com alguém lá das Filipinas ou de Carapicuíba, mas, ao mesmo tempo, esse ato não nos basta, bichos humanos que somos. E, bichos humanos que somos, chegamos a um tempo em que a falta de tempo é tão aterrorizante, que já não conseguimos nem ser e nem ter amigos como antigamente: Amigos para sair e tomar um chá ao final da tarde, para ir ao cinema junto, para sentar no banco de uma praça e jogar conversa fora. Amigos que nos alimentam a alma, que nos curam com a sua presença e não, simplesmente, aliviam a nossa solidão.
Amigo de verdade tem história e segredos compartilhados, tem calor humano, vibração e cheiro. Amigo de verdade, sabe ouvir e calar-se. Reconhece nossos erros sem nos julgar e vibra com nossos acertos. Amigo de verdade tem aquela voz que reconhecemos à qualquer distância, que nos conforta e nos fortalece. Voz de Claudia, de Tereza, de Dyrce, de Lucimara, de Marilda, de Maurício, de Luiza Irene, de Mirian, de Zé Winston, de Mário, de Orlando, de Mariângela, de Jussara, de Edna, de Sônia, de Celso, de Eliana, de Eliane, de Dolores, de Célia, de Nair, de Graciela, de Eloisa, de Meiri, de Benny, de Ocílio, de Magela, de Rubinho, de Van, de Carolina, de Cris, de Valdeci, de Ana Paula… Ô meus queridos amigos, que saudade de vocês!
(Ludmila Saharovsky)
Crônica publicada na Revista Absollut deste mês.
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Filigranas
Hoje me choquei contra a realidade do céu azul
e a palavra que queria dizer-te, espatifou-se em minha boca:
Virou suspiro, virou soluço, virou saliva, virou susto!
De repente, o eixo de marfim que me mantinha centrada neste mundo, equilibrada, equidistante, tornou-se uma espiral de sonhos a atravessar-me, a dividir-me ao meio: Metade mulher, metade filigrana ornando um camafeu onde vejo a estampa de meu próprio rosto.
Sou fêmea na aurora, preenchida por seixos e presságios, deusas e demônios, pardais, andorinhas, adágios de violoncelos e flautas.
Consegues perceber a metamorfose?
Será que mesmo assim, poderás identificar-me?
Sentir meu cheiro e gosto?
Perceber esse alarido de pássaros que me atravessa a alma
e se desprende de mim, feito choro de violoncelo e cuíca em contraponto?
Ah! meu coração está repleto de candeias acesas, tochas, archotes, velas aguardando um rito nobre que o ressuscite, que o redima.
Estou assim, indefesa no universo: a vida escorrendo em mim, feito areia na ampulheta. Escorrendo, escorrendo, mais um grão…mais um,
enquanto vou me consumindo nessa miragem, abismada em profundezas infinitas.
Ilusões, ruídos de tambores distantes enviando mensagens cifradas:
Para que? Para quem? Para mim? Para este outro que em mim se esconde?
Mas afinal, de quem é este destino que se tece assim, meio que à revelia, entre as cordilheiras?
Ludmila Saharovsky com arte de Jareck Kubicki
Pastaria
Há anos vivia observando a cortina que esvoaçava na janela aberta que lhe revelava um jardim que mal cabia em suas retinas. Abelhas, borboletas, mariposas, nuvens caminhando lentas, um raio de luz entre as avencas e folhas soltas pastando no gramado compunham o cenário. E o tempo, pastando nela. (Ludmila)
Foto de Manuel Ricardo Jurema
A menina e a boneca
A menina ganhou a boneca tão desejada. Presente de aniversário. Certa tarde, esqueceu-se dela na casinha armada entre os canteiros do jardim. Manhã seguinte, a boneca, coberta pela geada, perdeu a voz e o azul dos olhos de vidro enlagrimou-se. Choram, a menina e a boneca, no jardim, inconsoláveis. Na boneca, dá-se um jeito. Na dor da menina, não! (Ludmila)
Estrela
Amigos
A terceira margem do rio
Á noite, encontrei-me com o poema.
Á noite encontrei-me com o poema.
Ele dormia intocado no silêncio de minha língua
com suas palavras permeadas de metáforas,
antes de ser verbo e se fazer carne de minha carne
e habitar as entrelinhas da matéria.
Á noite encontrei-me com o poema. e antes que ele despertasse
e preenchesse de letras rebuscadas a minha boca, preenchesse de
água e fogo minhas entranhas e saísse feito dardo sonoro iludindo meus sentidos e dando vida a abstratos pensamentos, eu o sorvi, transformei-o em sopro, em alento, em suspiro, em saliva e o protegi de mim! Então a noite encheu-se de estrelas, a poesia surgiu das trevas e alimentou-se da calmaria do tempo, e expandiu-se livre, em seu calado e insondável mistério e habitou entre nós. (Ludmila)
O idioma dos sonhos e das nuvens
Este idioma com que falo às nuvens
enquanto o sono me espreita e confunde as imagens com que colonizo os sonhos
é língua estrangeira de reduzido uso.
A ela respondem as ondas e os rochedos
e algum pássaro noturno, se o chamo pelo primitivo nome.
Então, abrem-se as portas do reino,
o sono vence a batalha e me leva ao seu domínio:
lá onde as estrelas surgem,
lá onde os poemas nascem,
lá onde o silêncio reina soberano,
lá onde a vida forja novas contendas
e me semeia de abismos.
(Ludmila)
Ária para o assovio do vento
Só o vento assovia
uma ária para pássaros e flores
e eu danço entre nuvens, incendiada de urgências,
anelando pelo mistério das águas
e seus aromas de encantar libélulas
e seus poderes de acordar sementes
e sua magia de alimentar riachos e refletir estrelas
e de fazer nascer em nós a poesia…
(Ludmila)