Os sinais se fixam nas dobras da memória

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Os sinais se fixam nas dobras da memória

Os sinais se fixam
nas dobras da memória
e a dor desperta o esquecimento:
raiz de tantos segredos que o tempo encobre.
Silêncio…silêncio…
Dormem as estrelas envoltas por uma luz
que há muito já não brilha.
A noite é um vagão povoado de espectros.
Eles, com gestos leves
desenham sinais, indecifráveis,
que se fixam nas dobras da memória
e esta dor…
(Ludmila Saharovsky)

    

    Abismo de Rosas

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    Abismo de rosas (com licença poética de Americo Jacomino – Canhoto)

    Grito teu nome
    Sobre o abismo
    e a paisagem renasce entre os rochedos.
    Teu nome feito de barro e sementes,
    vento e luz, é água viva, fonte de murmúrios.
    Teu nome reverbera, arde em mim:
    carne, sangue, seiva, raiz e fruto.
    Teu nome – canto de amor
    neste abismo de rosas.
    (Ludmila Saharovsky)

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    Américo Jacomino (São Paulo 12 de fevereiro de 1889 — 7 de setembro de 1928) foi um importante compositor e violonista brasileiro, popularmente conhecido por Canhoto, em virtude de executar o dedilhado no instrumento com a mão esquerda, sem inversão do encordoamento. Canhoto foi um dos responsáveis por transformar o violão num instrumento musical “nobre”, uma vez que, até então, apenas boêmios faziam uso dele.

       

      Estações

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      Ah, esse verão e seu calor materializando cheiros e suores ardentes e embriagando-me de luz. Essa quentura palpável que gruda na pele, que se corporifica numa espera pesada, sem vento, sem clemência, sem frescor. Essa estação repleta de pastos queimados de sol e de palavras morrendo de sede dentro da boca. Uma incandescência sem brisas nem concessões à uma sombra amiga, qualquer que seja. Uma febre que me transporta ao deserto em mim, a uma sonolência improdutiva, a essa dificuldade que as coisas paradas sempre provocam em nós. Uma inércia que se repete e me traz à lembrança outros tempos, onde, em meio aos pátios despidos da escola alemã de minha juventude, eu senti pela primeira vez esse entorpecimento. Era uma paisagem sem qualquer planta que a colorisse, com nenhuma sombra, nenhuma alma amiga para trocar confidências, ouvir e ser ouvida. Nela eu permanecia assim, letárgica, esperando passar mais um dia, e outro, e mais outro. Aquelas paredes caiadas de um cinza desbotado lembravam-me de meu próprio desalento e da dificuldade em aprender um idioma complexo que os pais obrigavam-me a estudar, deixando-me entregue à voragem daqueles dias de verão que transformavam palavras em letras ardentes ante meus olhos e os enchiam de lágrimas e de preguiça.
      Olho pela janela e pressinto camelos levantando o pó sobre a areia escaldante das dunas que se multiplicam e multiplicam numa paisagem minimalista sem qualquer promessa de um oásis. Quem sou eu, me pergunto, envolta neste sudário de linho cru, caminhando em silêncio pelas ondulações arenosas sob meus pés cansados que carregam um fardo de carne e ossos? E para onde vou? Existirá um bosque refrescante além desta vidraça?
      Dor? Nenhuma! Apenas a indiferença colorida por tons secos e um sol que às vezes é, simplesmente, um caleidoscópio multiplicando irradiações de tédio e de fastio. Assim como eu, a tarde indolente também se arrasta, cumprindo um itinerário de espera. Aguardamos, ambas, que a noite caia e nos resgate, e nos redima, e nos refresque, e nos envolva no estado de graça que traz em si. Ah! Essa leveza, essa bem aventurança de céu que finalmente reflete a luz fria da lua! Um céu repleto de estrelas e constelações. Ele abre-se sobre nós e brilha e nos conduz à quietude e ao silêncio, aos sonho e anelos. Esse céu que nos absolve das angústias e nos permite descansar…
      Aguardo a noite ansiosa, porque ela me permite a fuga, ainda que momentânea, de compromissos e rotinas, de desertos e caravanas, de dunas e camelos. À noite dispo-me de mim. Desfaço-me do peso de meu corpo, de suas tantas sinas e permito-me sonhar com oásis e lagos repletos de água cristalina. Com garças alvas e peixes azuis. E tâmaras e figos frescos. E riachos e cascatas. E o vento trazendo enfim a chuva benfazeja. À noite impregnada de tantos mistérios, escura e veludosa, eu peço que me acalente e me embale. E, contrariando os instintos primitivos que nos levam a hibernar no inverno, quero adormecer agora, neste interminável verão…e despertar apenas quando se fizer, de fato e de novo, o inverno. (Ludmila Saharovsky)

        

        Oásis

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        Há muito associei minhas raízes às pedras que não são ansiosas nem buscam significados lógicos para coisas e fatos. Mas por compartilharmos do mesmo horizonte, eu necessito, assim como elas, saber também das coisas etéreas e celestes. Então, com pedras em meus alicerces, mulher sólida, terrena e antiga eu caminho em tua direção, com estrelas nos olhos, com nuvens gordas nos braços, para aconchegar-te, para cobrir-te com as suaves cores do arco íris e para pedir-te que nunca te afastes de mim, pois que, em segredo que revelo apenas para ti, conto que possuo uma nascente em mim, de onde brota uma água sempre cristalina que irá mitigar todas as tuas sedes: do corpo e da alma. Basta que me sinalizes: Estou indo…E eu, te acolherei, as pedras brutas transformadas em diamantes: Vem!
        (Ludmila Saharovsky)
        (imagem de Jerry Uelsmann)

          

          Doce lar…

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          Sonhei. Era uma casa embrionária. E era nossa.
          Nela, não divisei sala nem quartos, mas pressenti conversas longas no sofá frente à janela,
          que dava vistas à hortênsias e ciprestes que alguém, antes de nós, tivera o capricho de plantar.
          Inexistia, ainda, o cotidiano pó sobre o verniz dos móveis não adquiridos,
          nem marcas digitais pousadas em translúcidas vidraças,
          nas porcelanas claras, na fragilidade tênue dos cristais.
          Tampouco a lenha para alimentar o fogo fora recolhida.
          Mas, no futuro, à noite, eu vi a ampla porta de madeira fechar o mundo
          e os sons lá fora, enquanto o silêncio das coisas, tantas,
          reverberava dentro de nós.
          E eu não tentava transpor os limites que você instalara.
          Antes, eu respeitava seu campo, espaço e corpo.
          E instituía uma certa magia, um mistério que ficava pairando
          acima das relações humanas, que não se desintegrava na intimidade,
          no dia a dia, nas rotinas sufocantes, nesta mecânica corrosiva do vir a ser.
          Não. O destino não nos alcançava com seu dedo sempre em riste,
          indicando itinerários como já fez e continua fazendo, com tantos outros.
          Por isso a casa continuava sempre inconclusa.
          Se concluída, certamente, tornar-nos-íamos íntimos demais de sua posse,
          e o encantamento poderia se perder.
          Assim, a cada noite, agora, exercito-me em ouvir o degrau rangendo,
          precedendo seus passos que adivinho, enquanto trato de demarcar,
          na memória, a sólida fronteira:
          A realidade da casa: posse do mundo
          O seu anelo: posse minha e sua!
          Ludmila
          fotografia de Jerry Uelsmann