Era início de um junho frio e enevoado. Morávamos há pouco no Brasil e, naquele dia, especialmente, a mãe estava mais ansiosa do que de costume, porque depois de longas semanas de horas extras, o pai finalmente traria um pouco de dinheiro a mais, para que ela colocasse as finanças em dia. E o pai chegou com um misterioso pacote debaixo do braço. Recordo-me de que nos reunimos em volta da pequena mesa da cozinha, em suspense. Desviando-se dos olhares de censura intuídos, da mãe e da avó, ele desembrulhou o que seria a primeira extravagância de sua nova vida, e, em conseqüência, também da nossa. Numa elegante caixa retangular de madeira envernizada de preto, com um vistoso visor de vidro milimetricamente marcado por números verde claros e com dois botões, lá estava ele: nosso rádio que captava ondas médias e curtas! Tão logo foi ligado à tomada, recordo-me da emoção indescritível ao ouvir, pela primeira vez, a voz nostálgica de um cantor sertanejo interpretando uma música que dizia: “eu nasci naquela serra, num ranchinho beira-chão…” Eu não entendia nada do que a letra dizia, mas a melodia era linda! Em compensação, o sermão que o pai ouviu! Mas, alheio a tudo e a todos, ele girava prazerosamente os botões buscando uma fina sintonia, e, entre uma onda sibilante e outra, captava a transmissão desejada: o milagre da eletrônica! Podíamos, se quiséssemos, ouvir notícias da França, da Alemanha, e, com um pouquinho de persistência e a utilização da longa antena, captar a voz da própria União Soviética! Eu mal conseguia disfarçar minha felicidade. Eu e o avô: únicos cúmplices daquele jovem chefe de família que agora, excitado, chegava mais cedo em casa para dar-se ao luxo de usufruir daquela diversão: mesmo com os sapatos necessitando urgente de uma meia sola, o colarinho da camisa puído e as calças há muito pedindo um novo par. Assim que eu despertava, saía correndo para ligar o mágico aparelho de válvulas que enchia a casa de música, anúncios e notícias que me distraíam e alegravam. Deitava-me no chão ao lado da mesinha que lhe servia de suporte e, hipnotizada, cantarolava e imitava as frases dos locutores. Um dia, tomada por um sentimento egoístico de posse (eu o queria só para mim) tive uma brilhante idéia: Utilizando um grosso parafuso, caprichosamente, bem no centro do painel, risquei as primeiras letras de meu nome: LUD. Agora sim, o rádio me pertencia! De nada adiantou o desdobramento do avô tentando proteger-me da fúria do pai quando chegou em casa e viu o estrago. Creio terem sido as primeiras pesadas e dolorosas palmadas que levei, em toda minha vida. Mas as iniciais ficaram ali, gravadas para sempre naquele meu primeiro objeto de desejo. Cresci ao som de Marchinhas Carnavalescas, Aquarelas do Brasil, Bonecas Cobiçadas e também de tangos e boleros, além da inconfundível e solene abertura de O Guarani para a Hora do Brasil. Adorava quando a gripe me alcançava na mudança das estações. O rádio então ficava à minha disposição, distraindo-me e me fazendo companhia. Quando nossas finanças ficaram um pouco mais folgadas, o primeiro presente que pedi não foi uma boneca, relógio ou bicicleta. Quis ter um rádio, então já de pilhas, que, na cabeceira de minha cama ajudava-me a adormecer e a sonhar ao som de Nora Ney, Dolores Durant, Ângela Maria, Dóris Monteiro, Dalva de Oliveira, Os Cantores de Ébano, Almir Ribeiro, Miltinho, Cartola. Coisa boa dormir ao som de “A noite do meu bem”: Hoje eu quero a rosa mais linda que houver/ E a primeira estrela que vier/ Para enfeitar a noite do meu bem/ Hoje eu quero a paz de criança dormindo/ E o abandono de flores se abrindo/ Para enfeitar a noite do meu bem… Naquele tempo, a insônia não se instalava como agora, e a noite ia realmente “dormir encabulada, na passarela da madrugada”…
Que tempo mais feliz!
(Ludmila Saharovsky)
Pelas ondas do rádio
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