O OVO

Lud vista por Paul

Escrever é como tecer. É trabalho feito em tear sem que nos forneçam o esquema do desenho, o padrão a se seguir na tessitura.
Palavras como fios correm soltas pelas linhas, unem-se aos nós dos verbos, a adjetivos, a pronomes. Vez por outra o escritor se embaraça num pensamento e ao tentar desvencilhar-se se surpreende com novos pontos que atiçam sua criatividade: surgem na escrita, então, sonhos, emoções, fragmentos de memórias que o levam a outros vocábulos, aforismas e o assunto muda radicalmente de abordagem. Ele cria novas frases, associa ideias, arremata com reticências ou uma afirmação e ao reler a frase toda comemora a conquista: afinal conseguiu expor de forma clara o pensamento!
Curiosamente às vezes ocorre também o contrário. Olha-se para o texto-tecido e a sensação é a de que não era bem aquele produto final que se tinha em mente. Então só nos resta desmanchar tudo e reiniciar a obra.
Propor-se a criar algo, seguir o fluxo da inspiração e transformá-lo num desenho, numa escultura, num tapete ou num texto iguala-se ao exercício de dar à luz. Esta necessidade que possuímos de perpetuar-nos no mundo é diretamente proporcional ao medo que temos de nossa finitude. Carregamos em nós este ovo latente de possibilidades criativas que precisamos conceber. Esta afirmação me leva a um sonho que tive e que quero lhes contar:
Sonhei que estava imersa na água e dela saía vagarosamente carregando em minhas mãos em concha um ovo. Sua casca era uma membrana translúcida e firme. Uma delicadeza, iluminada por luz interna. Em seu interior estava uma jovem mulher em posição fetal. Ela me olhava com olhos desproporcionalmente grandes e eu a carregava com todo o cuidado. No trajeto tentava descobrir quem era a criatura e como o ovo foi parar em minhas mãos. Não me lembrava de tê-lo expelido, mas sentia que ele, de algum modo me pertencia.
Repentinamente eu tropecei e caí. Do interior da membrana rompida um ser alado precipitou-se para o espaço. Mas não! Não era a mesma mulher que eu carregava. Era um pássaro feito de luz e transparências. Talvez um anjo? E dentro de si carregava um ovo perfeito, concluído.
“Parir uma mulher é gravidez de alto risco”, ele me disse “A mulher tem mãos que levam direto ao coração e são capazes de desatar nós, qualquer que seja a tessitura”.
Nem tive nem tempo de me assustar.
Eu observei aquele ser dissipar-se no horizonte. E preenchida por essas sensações eu despertei.
Que sonho estranho, vocês dirão. Mas, mais estanho ainda é esta necessidade que senti de torná-lo publico. De partilhá-lo com vocês que, no mínimo devem estar pensando aí com seus botões: “Mas isto é crônica que se escreva”?
Por que não, se a inspiração é sempre uma aventura?

Crônica de meu próximo livro “Cem crônicas escolhidas e alguns contos clandestino” que será lançado brevemente e foto de Paul Constantinides para a contracapa.

    

    Desejos, pássaros e flores

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    Havia desejos que sobrevoavam o jardim aguardando o momento de pousar nas flores que eu bordava.
    As linhas preenchiam pétalas e folhas, enquanto os desejos observavam minhas mãos tecedoras anelando por mais sumos e odores.
    Bordei dálias. Bordei crisântemos.Bordei jasmins.
    O pano já rescendia a mil aromas. E quando os desejos, enfim, sossegaram, uma revoada de pássaros soltou-se de meus dedos. (texto de Ludmila com Imagem de Michelle Kingdom)

         

      Quisera escrever-te um soneto

      poema liquefeito
      Quisera escrever-te um soneto
      mas me faltam rimas.
      Vestida de palavras
      penetro no silêncio
      que nas estrofes reina
      e, em meio às linhas
      surge teu nome
      liquefeito.
      Ele abre-se em mim
      flor de algodão e arpejos
      e o poema nasce, rutilante.
      Ele escorre feito mel e me alimenta.
      Só assim consigo concebê-lo:
      Em transe!

      (Ludmila)

        

        Ternura antiga

        corpo mulher

        Ternura antiga

        Eu te convido à minha casa. Entra!
        Pousa teu olhar sobre as videiras.
        Eu as plantei para saciar-te a sede.
        E o pão também é teu
        São teus o vinho e o lume.
        Para consagrar-te nao construi altares
        Só te falei numa linguagem pura
        E a essencia do amor selou o entendimento
        E teu corpo estremeceu dessa ternura.
        (Ludmila)

           

          Pedra da Memória

          pedra
          “Acordar não é de dentro.
          Acordar é ter saída.”
          (João Cabral de Melo Neto)

          Tudo dorme. Em mim tudo dorme: veias, nervos, poros, linfa.
          A noite encantou meus olhos quando a primeira estrela fixou-se nas retinas.
          A noite apossou-se de meu corpo e em ondas inundou-me de silêncio. Este, criador, onde tudo germina.
          E o tempo regressou da Eternidade e trouxe consigo a pedra da memória que se fechou, impenetrável, sobre o meu plexo.
          Alguém decifrará minhas cantigas, minhas palavras de amor e de alegria? Meus sonhos, fantasias, meus delírios?
          Caminho na noite com a pedra da memória imersa em meus ossos. Eu, seu fóssil. Eu: a pedra, a memória e a rota. Eu: o silêncio, a noite e o norte.
          Tudo que é vivo dorme em mim. Tudo dorme.
          “Acordar é ter saída?”
          (Ludmila)

            

            Lugares de antes

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            Um longo e estreito corredor levava aos fundos daquela casa de minha infância. “Fundos” lia-se na rara correspondência que lá chegava. Da pequena janela avistavam-se outras, tímidas, de venezianas sempre verdes e sempre semi cerradas preservando a preciosa intimidade. Caminho por esse corredor de volta ao meu quarto de menina. Meu e dos avós. Tento delinear sua presença entre aquelas paredes, mas os mortos partem sem deixar vestígios ou qualquer tênue sinal da vida que por ali passou. A menina que lá viveu também se foi. Perdeu-se num recanto inacessível do passado, como as dálias, as abelhas, o negro cão de olhar sempre alerta, os grilos cantores, as preciosas joaninhas, as pedras do jardim. Mas a luz continua a entrar pelas frestas da janela. A luz que revela as mesmas lágrimas de uma saudade antiga. Essa, que insiste em sobreviver. (Ludmila)

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