Os finais de semana de minha infância eram preenchidos pela expectativa deliciosa e única da aventura que seria, novamente, percorrer o longo caminho até o templo ortodoxo de Vila Alpina, de trem. Eu, linda em meu vestido de domingo, as tranças caprichosamente amarradas por grandes laços de fita de organza arrematadas por ponto de ajur, os sapatos modelo “boneca” em verniz preto (eles deixavam-me doloridas marcas nos calcanhares, que eu, estoicamente, suportava) sentava-me sempre ao lado da enorme janela. Observava, feliz, a manhã passar com suas caleidoscópicas imagens embaladas pela cantilena da máquina nos trilhos, como no poema Trem de Ferro de Manoel Bandeira: Ôo/ foge bicho/ foge povo/ passa ponte/ passa poste/ passa pato/ passa boi/ passa boiada/ passa galho/ de ingazeira/ debruçada/ que vontade/de cantar/agora sim/ café com pão/ agora sim/ café com pão!
Café com pão…Ah! A fome me torturava, mas, a comunhão… (lembram-se que lá no antigamente a gente só podia comungar em jejum?) Pois então! Ao meu lado crianças deliciavam-se com variadas e coloridas guloseimas enquanto eu engolia em seco, oferecendo aquele pequeno sacrifício ao menino Jesus, enquanto distraia-me com a paisagem. Mais tarde, casada, não trocava por nada a viagem de férias, com meus filhos pequenos, ao Rio de Janeiro, feita naquelas composições cintilantes de aço, formadas por carros-dormitórios duplos, cabine de cima, cabine de baixo, o cheiro de trem inesquecível e tão particular. Nós íamos deitados, juntinhos na cama beliche, o sono chegando mansamente, o céu salpicado de estrelas, a vida sacolejando por dentro de incontáveis túneis e curvas em direção ao mar. Pela manhã, após os malabarismos para escovar os dentes naquele banheiro minúsculo, dando bom dia aos passageiros que já estavam na fila, todos bem dormidos e arrumados, chegávamos aos subúrbios do Rio, sentindo o calor gostoso que nos recebia, junto com meus sogros, na estação. Então, àquele burburinho de malas e de pessoas misturava-se a alegria da chegada: Oô…Vou depressa/ vou correndo/ vou na toda/ que só levo/ pouca gente/ pouca gente/ pouca gente…
Na Rússia, a viagem entre Moscou e S. Petersburgo de trem, é muito concorrida, chique e sexy.(para os que podem ir de primeira classe!) A locomotiva, que parte às 23 horas é composta por inúmeros vagões e engalanada com brasões de latão que ofuscam a vista, de tão polidos! Os comissários de bordo, todos homens, com seus uniformes azuis escuros e galões dourados vão encaminhando os passageiros para cabines individuais. Assim que você se acomoda, aparece um garçom oferecendo champanhe e um sortido cardápio à escolha do viajante, onde não falta o famoso caviar de beluga. A noite passa rapidamente entre edredons de penas e a neve caindo do lado de fora, deixando a paisagem com jeito de cenário de filme. O sono custa a chegar, pois é tão bom usufruir daquele conforto, daquele astral, a cantiga das rodas sobre os trilhos, a manhã surgindo lentamente! Já a travessia de Moscou ao extremo norte do País dura muitos dias. As pessoas leem, escrevem, dormem, fazem as refeições, conversam nos corredores e nos vagões restaurantes. A travessia é muito mais instigante, agradável e cômoda do que de avião. Aliás, na Europa inteira viaja-se muito de trem. É cômodo. É econômico. Você descansa, cochila, relaxa. Conhece melhor a região, curte a paisagem, faz novos amigos, conversa, medita. São países civilizados, com outros hábitos e costumes. O trem é uma opção muito procurada e utilizada. Diferente daqui, onde antigos vagões viram sucata ou saudosas lembranças de um Brasil que optou pelo transporte rodoviário, tão impiedoso e chato e, pelo transporte aéreo que deixa muito a desejar! Viajar sem poesia, que graça tem?
Ludmila Saharovsky
(crônica publicada no Jornal Valeparaibano)
Viagens de antes
Responder